23 de fevereiro de 2021

Days of Ire: Ep.3 - Perspetivas de autor

 


"A Tricolor Húngara, sem o emblema comunista, flutua agora em muitos edifícios públicos e outros, por toda a cidade, enquanto multidões ordeiras, empunhando as suas bandeiras e entoando canções patrióticas, se movimentam à vontade. Sem controlarem o Governo, parecem estar tão perto quanto possível de controlar Budapeste."
[Tradução] Leslie Fry, Telegrama Confidencial, Budapest to Foreign Office, 25 de outubro 1956


Continuamos a conversa com Dávid Turczi, focando-nos agora no desenvolvimento de Days of Ire e nos desafios da criação de jogos que podem invocar histórias e memórias pessoais.

Interessas-te por assuntos históricos, em geral, e por jogos baseados na História?
Sempre gostei de temas históricos, sobretudo daqueles sobre os quais sabia umas coisas, fazendo-me sentir inteligente e “colocar tudo em contexto”. O Twilight Struggle e alguns bons filmes de suspense sobre a guerra fria tiveram o condão de suscitar em mim o gosto pela história posterior à Segunda Guerra Mundial.

Não aprecio jogos de guerra que são “simulações”, não jogo hexágonos-e-peças, e prefiro que o meu entusiasmo venha de algo mais do que muitos lançamentos de dados. Dito isto, um bom tema histórico, bem desenvolvido, que me possa ensinar umas coisas, tem boas hipóteses de me atrair, e de depois me fazer ler a Wikipedia.


Qual foi a motivação para criar um jogo baseado na Revolução Húngara de Outubro, e de prestar homenagem a todos que tomaram posição em 1956?
Era o 60.º aniversário, em 2016. Zsombor Zeöld, um amigo de um amigo, trabalhava no Ministério Húngaro dos Negócios Estrangeiros, sugeriu que criássemos um jogo (em que ele seria consultor para os pormenores históricos) e que tentássemos obter um financiamento governamental para a sua edição. 

Esse apoio acabou por cair (burocracias 😜), mas por essa altura já estávamos demasiado embrenhados no processo para desistir, e acabamos por publicá-lo com os meus amigos malteses da Mighty Boards (inicialmente conhecida como Cloud Island).


Ao abordar um tema destes, consideras que a distância temporal importa?
Provavelmente, dentro da equipa, eu era o menos inclinado para a história. O meu trabalho consistia em tornar o jogo equilibrado e fazer com que a estratégia importasse. No entanto, não estamos suficientemente distantes para olhar para as coisas de forma objetiva. Continuo a ouvir relatos sobre pessoas que disseram que o jogo trouxe de volta memórias trágicas da sua infância, mas que nos agradeceram pela abordagem, pelo que fico satisfeito por termos feito as coisas bem.


Tinhas já um conhecimento aprofundado dos acontecimentos, ou houve muita aprendizagem durante o desenvolvimento do jogo? Como efetuaram a pesquisa?
Tinha aprendido coisas básicas no secundário, lido um ou dois livros, falado sobre o assunto com o meu pai ao longo dos anos, mas não sou de todo um perito na matéria. O papel de Zsombor era criar “curiosidades históricas” que pudéssemos usar no jogo, e o de Mihaly era integrá-las.


Considero os jogos de recreação histórica conceptualmente mais exigentes, porque requerem um equilíbrio entre a história e o que é um jogo de tabuleiro equilibrado e jogável. Como foi o processo de definir que elementos deveriam estar no jogo (como lugares, acontecimentos, ações, mecanismos, personagens)?
Inicialmente tratava-se de inserir as “histórias interessantes” que Zsombor nos trazia, bem como os acontecimentos mais significativos. Mais para o final a situação inverteu-se, eu apresentava requisitos em termos de processo de jogo, e Zsombor tentava “encontrar uma história para”. Estávamos sempre a perguntar um ao outro “haverá algo mais que devêssemos mencionar?”.


Em muitos jogos sobre conflitos as unidades e as personagens são “anónimas”, noutros têm identidades fictícias, e ainda noutros, como Pavlov’s House, representam pessoas reais e têm nomes reais. Porque optaram por dar nomes aos combatentes revolucionários de Days of Ire?

Pretendíamos criar aquele sentimento pessoal, de modo a que te sentisses mal por sacrificar um combatente. De uma perspetiva puramente de mecanismo [de jogo], são literalmente escudos humanos, que podem receber os danos em vez de ti, mas não é assim que as pessoas pensam durante conflitos reais. Por isso, atribuímos-lhes características, e um nome, de modo a que te possas ligar a eles – “Lembras-te quando Károly salvou o dia trazendo-nos mais cocktails molotov?”…

Dito isto, queríamos evitar incluir no jogo a avó de alguém, pelo que adotámos o “inspirado por”. A maior parte das personagens representam algum revoltoso notável, ou alguém que fez um ato digno de registo antes de desaparecer do palco da história, mas alterámos todos os nomes por respeito aos mortos e feridos.


Os mecanismos e regras são mais simples do que nos jogos de guerra “clássicos” com que cresci, com centenas de peças, livros de regras extensos, e uma preocupação com escalas de tempo e de espaço.  Pode-se dizer que é mais guiado por acontecimentos do que uma típica simulação de combate. Que sensação procuravam?
O jogo baseado em cartas, do lado Soviético, foi inspirado pelo Twilight Struggle, enquanto que o lado Revolucionário era suposto ser uma variante ao estilo de um “Pandemic pesado”. Certamente não o que se espera de um jogo de guerra, mas que evidencia o nosso percurso diferente. 


O jogo inclui modos a solo e cooperativos, como revolucionário, e competitivo, em que um dos jogadores controla o lado soviético e do estado. Esta era uma intenção original, ou os vários modos foram surgindo durante o desenvolvimento?
Começamos pelo modo competitivo. O modo solo/cooperativo foi especificamente concebido para reproduzir a sensação de jogar pelo lado Húngaro face a um oponente real.


O jogo inclui fotos de arquivo, informação histórica de contexto, mais o belo toque adicional de ter a escrita fonética dos nomes húngaros, e um esquema de cores baseado na bandeira Húngara. Foram opções para reforçar a presença do tema e despertar curiosidade sobre os acontecimentos?
Isso foi a boa influência de Zsombor em todos nós 😊


Quanto tempo demorou o jogo a fazer?
Começámos no verão de 2014, e se bem me recordo o jogo foi lançado no Kickstarter em 2016. Foi quase autopublicado, uma vez que a Cloud Island era só uma pessoa e alguma ajuda extra, à data (David Chircop, com quem mais tarde trabalhei no Petrichor), pelo que nós dávamos indicações ao designer gráfico, ao artista, revíamos, tudo. Aprendi muito sobre o processo de edição com isto, com os nossos erros e com as manerias em que os corrigíamos… 


Porquê a continuação com Nights of Fire?
Brian Train, o criador de A Distant Plain foi um apoiante [no KS], e mencionou que tinha criado um pequeno jogo tático de guerra urbana sobre “a semana seguinte”, em que ocorreu a retaliação soviética. Assim, pedi-lhe para criar a sequela em conjunto comigo, e casei a sua abordagem tática com o meu jogo à base de cartas, inspirado nos jogos euro, e com processos de decisão de baixa sorte / elevada escolha.


Há algum projeto deste  género na calha, ou apenas à espreita?
Tenho um jogo de conflito, não histórico, a chegar, Defence of Procyon III (em distribuição daqui a poucos meses), que é um jogo de guerra de 2 contra 2, com aleatoriedade mínima e 4 fações com características únicas.


Muito obrigado pela disponibilidade e amabilidade, Dávid! 


Agora sabemos um pouco mais sobre Dávid Turczi, a pessoa por detrás deste e de outros jogos, tocámos ao de leve na superfície do processo de criação de jogos, no trabalho de equipa e na complementaridade de papéis, nas dificuldades da edição, na influência de jogos passados e na ligação a jogos que ainda não o são, nas ligações que se criam.

É tempo de continuar. É altura de entrar na caixa!


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