24 de fevereiro de 2019

Nas areias do deserto



Sol, muito sol.
Areia, dunas, algumas rochas.
Pontos de água, a espaços apenas.
Palmeiras na distância, anunciando descanso.

Virando-me no dorso, olhando para trás, vejo a fila de animais que se estende através do deserto.

Olho em redor e vejo … camelos … mais camelos ...
De várias cores … em filas … conduzidos …. conduzindo …
Cruzando o deserto … através do deserto …

Miragem?




Não! É real!

A realidade de um cameleiro, um de entre cinco.
Montando e conduzindo camelos através do deserto.
Formando cáfilas cada vez maiores, preenchendo o vazio.

Em busca de pontos de água.
Rodeando territórios.
Ligando oásis.

Ambicionando ter a caravana mais longa.




E sim! Os camelos têm cores!

São muitos, nesta zona do deserto.
Já os contei, num dia bom.
Dez, vinte, trinta … cinquenta … cem … cento e setenta, que eu conheça!

Pertença de diferentes tribos, reunindo até 30 cameleiros.
Uma cena difícil de imaginar, para quem nunca presenciou uma parada de camelos.

O deserto nem sempre está deserto.
Tem dias.




Água.
Pontos de água.
Sinónimo de vida no deserto.

Pontos estratégicos, de maior ou menor valor.
Pontos de vitória, valendo um, dois ou três pontos.

Que só recompensam o primeiro de entre todos.
Esgotam-se depois de uma caravana lá chegar.
Como a água que é escassa.




A chegada a um oásis.
Cinco pontos para a caravana.

O oásis permanece.
A caravana pode seguir.




Um oásis em hora de ponta.

Alcançado por quatro caravanas.
Todas beneficiam da sombra das palmeiras.
Todas pontuam e podem prosseguir o seu caminho.




Por vezes os cameleiros reclamam terra como sua.
A caravana traça os limites de uma porção de deserto.

Assegurando a pertença da água que se encontrar no interior.
Assegurando pontos iguais à extensão das areias.




A caravana maior de todas as caravanas.
O orgulho de qualquer cameleiro.

Uma competição para cada cor de camelo.
Porque sabemos que as cáfilas são monocromáticas.

Com tanto valor como chegar a dois oásis.




Por do sol sobre o deserto.
Sombras que se alongam.
Contas que é preciso fazer.

Através do deserto é, sobretudo, uma questão de habilidade no espaço e no tempo.

No espaço, porque estas caravanas de camelos não se mexem, na realidade. Apenas crescem. Um ou dois camelos de cada vez. A partir de uma posição inicial.

No espaço também, porque não se podem atravessar umas às outras, porque não se podem tocar se tiverem a mesma cor, porque permitem ou impossibilitam o acesso aos pontos de água e aos oásis, porque definem territórios.

No tempo, porque é tudo uma questão de escolhas: fazer crescer uma caravana mais depressa, adicionando dois camelos de uma vez só, ou fazer crescer duas caravanas distintas, obter pontos ou confinar adversários, procurar ter a maior caravana ou diversificar as apostas.

No tempo, porque todas as escolhas têm um custo de oportunidade.

Por do sol sobre o deserto.
Não foi uma miragem.


Knizia, Reiner, Durch die Wüste [Através do deserto], Stuttgart, 1998: Kosmos Verlag.

16 de fevereiro de 2019

E a Vida continua ... com Don Woods!


Em “É a Vida!” abordei o Jogo da Vida, de John Conway, e uma das versões a dois, Imigração, desenvolvida por Don Woods.

Ora este mundo de interligações em que vivemos proporciona possibilidades e acontecimentos inesperados: uma pesquisa, um endereço encontrado, uma mensagem enviada, uma resposta que foi parar ao spam, a sua recuperação muitos dias depois.

Tudo facilitado pela tecnologia, mas só realmente possível pela gentileza das pessoas: Don Woods, ele próprio, teve a amabilidade de partilhar algumas memórias e responder a um conjunto de questões enviadas por este desconhecido, a milhares de quilómetros de distância, a propósito de um jogo criado há umas décadas!

Um bom pretexto para revisitar Imigração, e um pouco mais.

Ironicamente, numa etapa da sua carreira de programador (que inclui empresas como Sun Microsystems, Xerox, e outras que vieram a ser adquiridas pela Microsoft e pela Google), Don trabalhou numa empresa de serviços relacionados com filtragem de spam. E eu quase perdi a sua resposta por causa de um filtro de spam!

Desde sempre um fã de jogos, Don Woods criou, com Will Crowther, nos anos 70, o jogo de computador Adventure, considerado o primeiro jogo de ficção interativa em que o jogador introduzia os seus comandos em linguagem natural. Como veremos pela escolha de jogos, o gosto pela aventura continua.

Não admira, por isso, que, combinando o entusiasmo pelos jogos, a programação e a abordagem lógica e matemática que lhe está inerente, tenha tentado transformar o abstrato Jogo da Vida, mais contemplativo, num jogo para dois. Nas suas próprias palavras.

Tenho interesse por jogos desde muito novo, por isso não me parece surpreendente que eu quisesse encontrar uma versão da Vida para dois jogadores, mas já não me lembro de uma inspiração específica.”

Ou, talvez mais apropriadamente, num conceito de jogo.

Devo confessor que, na altura em que me surgiu a ideia para Imigração, eu era ainda muito inexperiente no desenvolvimento de jogos, pelo que estava principalmente a tentar descobrir o que tornaria o jogo interessante. Também não recordo muitos testes do jogo, pelo que o jogo é, essencialmente, hipotético.”

E clarificando, sobre o jogo em tabuleiro:

Tenho a certeza de que nunca fiz nenhuma análise profunda de Vida, a não ser em computador”.

Uma parte da troca de mensagens incidiu sobre a mecânica do próprio jogo, alternativas ou possíveis evoluções. Relembro que em Imigração as intervenções dos jogadores se fazem apenas de 10 em 10 jogadas, sendo o resto do jogo ocupado pelo desenvolvimento automático do “organismo”, de acordo com as regras de nascimento e morte de células.

O intervalo de 10 gerações foi uma escolha arbitrária que pode, sem dúvida, beneficiar de um ajuste fino. Tornar possível a intervenção dos jogadores em todas as jogadas seria claramente demasiado caótico, mas é possível que o intervalo certo possa ser mais curto ou mais longo, ou até ir crescendo à medida que o jogo progride, para tornar mais possível a recuperação de um jogador com uma posição em declínio.”

Em “É a Vida!” eu tinha aventado a hipótese de inverter a ordem de jogada: não o jogador com uma população maior, mas dar a iniciativa ao jogador em desvantagem. Ora, de modo interessante, nem sempre a iniciativa é o fator mais importante, e pode, até, induzir efeitos adversos, como relembra Don Woods:

Em relação a qual jogador deve ser o primeiro a adicionar o seu imigrante, penso que a posição mais forte deve ser a primeira adicionar, de modo a que o jogador mais fraco possa reagir e limitar o dano. Se o jogar mais fraco tem de jogar primeiro, a posição forte fica livre seja para contrariar essa jogada, seja fazer um ataque que não pode ser contrabalançado.

E ainda sobre a hipótese de uma variante para mais do que dois jogadores:

Lembro-me de pensar um pouco sobre suportar mais jogadores, e tenho a certeza de que vi regras para autómatos com mais de três estados (incluindo vazio). A parte complicada é encontrar uma regra para determina que jogador “detém” a nova célula que nasce. Uma vez que são precisos, exatamente, três vizinhos para gerar um novo nascimento, era fácil criar uma regra para dois jogadores, baseando-a na maioria. Com 4 jogadores poder-se-ia definir que a nova célula pertence ao jogador que detém 2-3 vizinhos, ou para o 4.º jogador se os três vizinhos forem todos diferentes. Mas nunca experimentei algo deste género.”

Reflexões interessantes sobre a noção de vizinhança, e as suas implicações, com potenciais aplicações para o desenvolvimento de jogos de tabuleiro!

A lista de preferências de Don Woods, cobrindo diferentes fases, inclui jogos como Titan (Avalon Hill, 1980), Empire Builders (Mayfair Games, 1982), Wizards (Avalon Hill, 1982). Race for the Galaxy, desde a fase de pré-publicação, e Dominion (Rio Grande Games, 2007 e 2008). Para além de jogos de computador.

Muitos dos melhores jogos dos últimos anos continuam a ser jogos abstratos, no seu núcleo, mesmo se há um tema e uma estrutura sobreposta à mecânica. Tendo a preferir jogos com um elemento de aleatoriedade, para manter a novidade e não ficar atolado em análise. (Azul é um bom exemplo recente)”. 

E já agora, quanto a jogos “de hoje” as preferências vão para Terraforming Mars, Gloomhaven e Azul.

Para terminar, uma palavra sobre o bichinho da criação:

Normalmente não crio jogos, mas tenho vários amigos que o fazem, e assim satisfaço a minha “comichão” de autor testando os jogos deles e oferecendo sugestões.

Muito obrigado, Don!

P.S. – O Jogo da Vida de Conway e os autómatos celulares com ele relacionados continuam vivos: http://www.conwaylife.com/

9 de fevereiro de 2019

JAM, Gravado na pedra


JAM. Jogando à volta do Mundo. Hoje em formato diferente, saindo das salas onde habitualmente se joga, deixando as mesas, os tabuleiros que se dobram, as caixas.

Em viagem pelo território.
Do museu às igrejas e castelos.
Da capital Lisboa à raia da Beira Alta.
Espreitando para o resto do País e para mais além.

Em viagem pelo tempo.
Tempo dos jogadores e dos construtores, ou dos construtores-jogadores.
Tempo dos arqueólogos, dos conservadores, dos historiadores, em busca da memória.
Tempo dos visitantes.

Percorrendo a árvore da família.
Num texto com fotografias enviadas pela filha e artigos escritos pela mãe!

A propósito de tabuleiros imóveis, gravados na pedra, que permanecem depois das pessoas, aguardando por outras gentes. Adaptando a letra dos Barclay James Harvest, “Now the People Are Gone Just the Games' Boards Alone”.


Comecemos pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa, com uma reprodução e ficha informativa sobre o Alguergue, na variante de Alguergue de 12 (fotos de Leonor Conceição).

Um tabuleiro de 5x5 pontos. Uma dúzia de peças de cada lado, deixando apenas uma interseção livre no início do jogo.

Linhas que juntam os pontos e indicam os movimentos possíveis. Movimentos que são apenas de uma casa de cada vez, de um ponto para um ponto vizinho desocupado.

Capturas, saltando por cima de uma peça adversária adjacente para a casa imediatamente a seguir, desde que esta se encontre livre. Possibilidade de capturas múltiplas, em sequência, numa só jogada.

Um jogo clássico, de combate a dois.




Deixemos o Museu, rumo à Beira Alta, concelho Sabugal, na fronteira com Espanha.

Vamos, pela pena de Manuela de Alcântara Santos, ao encontro de tabuleiros de alguergue inscritos no granito e descobrir um pouco mais da sua história [1].

Alguergue, palavra que vem do árabe antigo al-quirkat, pedra pequena. Palavra que denota a origem próxima destes jogos que viajaram até nós: introduzidos na Península Ibérica pelos muçulmanos de além-mar.

Não um jogo, mas uma família de jogos, com princípios comuns, mas com diferentes tabuleiros e número de peças.



Aqui, no Sabugal, trata-se de cinco alguergues de outras variantes, designadas de 9 e de 3.

Tabuleiros gravados no Sabugal, em Vila Maior, Vila do Touro, Sortelha e Rendo. Em afloramentos rochosos ou em construções. Todos provavelmente da época medieval.



Do Sabugal passamos ao resto do País, encontrando mais, muitos mais, jogos gravados na pedra.
Para cima de 250 tabuleiros identificados na obra de Lídia Fernandes [2], com uma clara maioria de Alguergues de 12 e de 9, de Norte a Sul, de Valença a Silves, remontando alguns aos séculos X-XI.



E vamos mais além, atravessando fronteiras de Países, regiões ou tribos, comunicando em idiomas diferentes, usando nomes distintos, mas jogando os mesmos jogos: Alquerque (Espanha), Marro (Catalunha), Marelle (Itália), Marella (Sicília), Mérelles (França), Bara-Guti (Índia), Natt klab ash-shawk (Palestina), Damma (Sara), Aiyawatstani (Novo México), entre muitos outros [3].



[1] Santos, Manuela de Alcântara (2012), Tabuleiros de jogos de alguergue no concelho de Sabugal, Sabucale – Revista do Museu do Sabugal, 2012, n.º 4, pp 83-96.

[2] Fernandes, Lídia (2013), Tabuleiros de jogo inscritos na pedra – Um roteiro lúdico português, Apenas Livros.

[3] Murray, H.J.R (1952), A history of board-games other than chess, Oxford at the Clarendon Press.



Participa também nesta JAM session - Jogando à Volta do Mundo - e segue a etiqueta JAM.
Envia uma foto de uma sessão de jogo, nome do jogo, o teu nome, cidade, País (e, se quiseres, uma frase curta sobre a sessão e ou uma foto da cidade) para gamesinbw@gmail.com.

3 de fevereiro de 2019

O caminho das pedras


Percorrendo o caminho das pedras. Uma pedra de cada vez. Sobre terra firme, em tons de verde. Tentando chegar tão longe quanto possível. 

Apanhando pedras célticas, valiosas para as contas finais. De somar ou de subtrair, em função do número de pedras.

Percorrendo os caminhos das pedras. Não um, mas cinco. Com cores, Azul, Verde, Rosa, Amarelo, Vermelho. Não sozinho, mas em companhia de outros caminhantes. Competindo. Correndo sobre as pedras, uma pedra de cada vez.


"Hmmm ... Mão inicial. De um baralho com cartas de 0 a 10. Uma cor para cada caminho. A colocar por ordem crescente ou decrescente. 

As primeiras escolhas parecem óbvias: amarelo em ordem crescente; azul em ordem decrescente. Quanto ao resto é melhor esperar pelas próximas cartas. 

Arriscar já a mover o único marcador grande, que pontua a dobrar, pelo caminho amarelo? Acho que sim! Por agora só não poderei aproveitar os zeros amarelos."


Em cada jogada, apenas uma carta. Cada carta, um caminho, um movimento.

Quem apanhará a próxima pedra? Preto ou Branco?

Dar prioridade a este caminho ou avançar noutro?

Jogar uma carta fácil, na ordem certa na sequência, dar um grande salto, por exemplo, de um “7” para um “2”, comprometendo futuros avanços, ou aguardar por uma carta melhor?

Tentar um bónus de movimento num outro caminho?

Levar o jogo para o final ou atrasar o desfecho, para melhorar a posição em cada um dos cinco caminhos?

Escolhas!


O jogo está quase no final.

Há dois jogadores que já apanharam 3 pedras preciosas.

O marcador preto grande já chegou ao fim do caminho. Vai dar 20 pontos (10 x 2, por ser grande). O cinzento está lá perto.

Boas escolhas!


Knizia, Reiner. Keltis. Stuttgart, 2008: Kosmos Verlag. Devir.