1 de dezembro de 2024

Notas de uma exposição - O convite

 

Os jogos não têm por hábito sair de casa, com exceção da presença nuns encontros de família, umas viagens em tempo de férias, ou alguns dias aqui ou ali. É certo que alguns, poucos, como o gamão de viagem, uns baralhos de cartas e uns dados de póquer, fizeram já milhares de quilómetros, entre aviões, comboios, automóveis e bicicletas. E alguns outros visitaram mesmo sítios de inspiração para a sua criação, como as peças de Glen More que foram a Loch Ness e outros lugares da Escócia. Mas, por norma, e durante a maior parte do ano, conhecem apenas o trajeto entre estantes e mesas, e não vêm muitas pessoas.

Até que um dia, no meio de uma das nossas conversas, a Margarida Almeida me perguntou “Queres organizar uma exposição de jogos de tabuleiro?”. A primeira reação foi de surpresa. Nunca tinha olhado para os meus jogos como uma coleção, muito menos com uma coleção visitável, com interesse para outros. Eram jogos para usar, de diversos modos. Bem, pensando melhor, havia, de facto, algo de colecionismo, com jogos adquiridos sabendo de antemão que seriam pouco jogados. Adquiridos pelo tema, pelos processos, pela complexidade, ou pela arte, mas mais por decisões avulsas do que por um propósito específico. 

À surpresa inicial foram-se sucedendo questões várias, sinal de que o desafio lançado estava, desde logo, aceite. Como se concebe uma exposição, partindo do grau zero de experiência. Para que público. Com que tema condutor e possíveis ramificações. Com que grau de interação. Como se gere o espaço. Como se organizam os expositores, ou melhor, os jogos dentro de expositores. O que será necessário em termos de materiais de apoio e informação. Mais perguntas que respostas, mas sabia que podia contar com a experiência e criatividade da Margarida! 

No entanto, por essa mesma altura, adensavam-se sombras negras sobre o mundo. Sombras que se aproximavam, vindas de longe, transformando qualquer sentido de normalidade à sua passagem. E que acabaram, inevitavelmente, por chegar, remetendo a vida que lhes resistia um confinamento que se estendia, numa suspensão indefinida, realidade irreal. Estávamos em dois mil e vinte e a pandemia chegara. Restava aguardar por um futuro.

5 de novembro de 2024

Dos seis aos sessenta

 

Seis. Mais coisa, menos coisa, a idade das primeiras experiências e primeiras memórias com jogos de tabuleiro. Antecedidos por outros jogos, de cores e formas, palavras e números, papel e lápis, dados e peças.

Sessenta. Anos com jogos. Anos de jogos. Descobrindo, aprendendo, explicando, experimentando. Em família, sempre. Com amigos. Com aqueles que se conhecem pela primeira vez à volta de uma mesa, numa qualquer cidade, sem fronteiras. 

Seis. Os anos deste blog. Anos de descoberta de grupos e convenções, de pessoas que imaginem jogos antes de estes o serem na verdade, dos papéis diversos que se escondem por detrás de uma caixa, da indústria que os faz chegar até à nossa mesa.

Sessenta menos seis. Um esboço sobre os anos até ao blog, escrito para o número 3 da fanzine Joga Forte, uma das muitas iniciativas da Associação Cultural e Artística ARTMATRIZ. Uma forma apropriada de assinalar a data. Aqui fica o texto publicado.



Do Hobby à Indústria

Jogos. Sempre. Desde que me lembro. Aí por volta da primeira pegada na Lua. Coisas de família! Como os jogos de destreza, com o prego ou as pedrinhas em tardes de praia, ou o mikado sobre a mesa. Corridas de caricas em pistas improvisadas. O rapa rodopiando, entre a sorte e o azar. Brincando com palavras, ao americano e ao stop. Deduzindo com lápis e papel, em batalhas navais de barcos imóveis. As cartas, com a batalha, o burro, a bisca e a sueca. Perguntas e respostas, com o Sabichão. Ou os primeiros jogos do tabuleiro, como o Vamos às Compras ou A Volta ao Mundo. 

A oferta era escassa, nos anos 70, assente sobretudo na Majora ou Karto, as principais editoras nacionais. Títulos como Monopólio, Futebol de Mesa, Fórmula 1, Munique 74, Bolsa, Petróleo, As eleições e os partidos, ou Hóquei em Patins, ocupavam a mesa, em casa ou em casa de amigos. A solo ia criando os jogos que não existiam, com as peças a ganharem vida própria, substituindo os jogadores ausentes. Usando os componentes de jogos, ou até bases e peças de lego, mapas e dados. Um mundo em cada jogo!

Os jogos abstratos iam conquistando o seu lugar próprio, sobretudo graças ao xadrez. Tanta estratégia por detrás de regras tão simples! Depois veio a competição, que se prolongou por décadas, mas isso são outras histórias.

Nessa época, o tempo fluía a outro ritmo e as férias de Verão duravam três meses! Tempo em abundância, escassez de jogos, e um parceiro regular como o Eduardo, foram os ingredientes certos para explorar os nossos jogos até ao limite e para além dele. Simulando campeonatos, as grandes voltas ciclistas, ou campanhas. Introduzindo assimetrias, porque o contava eram as personagens do mundo real, e nós éramos meros facilitadores de histórias. Tudo meticulosamente registado em pequenos cadernos. 

Os jogos “diferentes” vinham então do estrangeiro, de Espanha por exemplo, nesse tempo pré-CEE. Os primeiros jogos verdadeiramente complexos. As primeiras recriações militares. Panzerblitz, Operação Barbarossa, Air Force, mais tarde as tensas negociações de um Diplomacy.

Por essa altura, descobria também os com miniaturas, graças à revista História, e a uma secção com regras para combates táticos da Segunda Guerra Mundial, assinada por Victor Amorim.

Mas foi a revista Jeux & Strátegie, que aparecia a cada dois meses num quiosque em pleno centro histórico de Guimarães, que muitas outras janelas se abriram! Uma revista com as últimas novidades dos mercados ainda inacessíveis. Artigos sobre jogos de todos os tipos, do tabuleiro aos jogos de personagem, das máquinas de calcular (!) aos primeiros computadores pessoais, das estratégias aos enigmas. E sempre com um jogo original para destacar e montar. Matéria de sonhos…

A década de 90 ficou marcada pelo aumento do número de jogadoras em casa, que passou para três 😊. E também por idas ao estrangeiro, que permitiam o acesso aos “outros” jogos, complementando os que se encontravam por cá. Na L’Impensé Radical, junto aos Jardins do Luxemburgo em Paris, ou em Londres (seria a Just Games?). Civilization, Ace of Aces, Speed Circuit, Squad Leader, Catan, Go, Mancala, Quarto. 

Ao virar do milénio, o tempo para os jogos diminuíra, embora a coleção continuasse a crescer, à medida do que ia encontrando. Carcassonne, Alhambra, Keltis. E não me apercebi, de todo, da revolução que estava a acontecer neste meu hobby de sempre… 

Foi só em 2018, quando decidi criar o blog A Preto e Branco, com textos e fotografias sobre os “meus” jogos, e procurei meios para o divulgar, que descobri a nova realidade dos jogos de tabuleiro. Grupos nas redes sociais, sites dedicados, plataformas de financiamento coletivo, encontros locais e convenções, produtores de conteúdos, criadores, a indústria. Pessoas. Muitas pessoas. Acessíveis. Com nome próprio. Muito diferente do tempo em que os jogos apenas continham a identificação da editora, e se jogava apenas com conhecidos.

Logo de seguida, a participação na primeira convenção, a InvictaCon de 2018, e os encontros dos 
Boardgamers de Aveiro. E foi mais um pequeno passo até à primeira tradução de regras, do jogo Whales Destroying the World, da checa TimeSlugStudio.

Não tinha ainda a perfeita consciência de que estava a caminhar em direção à indústria. Mas os astros foram-se alinhando gradualmente. De forma vaga e imprecisa. Ao sabor do mote escolhido para o blog: Vagueando na terra dos jogos! 

Mas isto é tema para a segunda crónica. Até lá, bons jogos!

14 de janeiro de 2024

Um contínuo de descontinuidades


O tempo escoa-se no seu rimo constante e próprio. Alheado de alegrias e dificuldades. Como o movimento desta esfera de terra e de água, de gelo e de fogo. Rodopiando através do negrume do espaço. Em torno daquela estrela amarela, de meia-idade, a que chamamos Sol.

O tempo solavanca, cessa, e recomeça. Progride por degraus. Vinte e quatro depois de vinte e três. Janeiro depois de Dezembro. Um depois de trinta e um. Vira-se a página do calendário. O tempo é reposto enquanto continua a avançar.

Na terra dos jogos há um outro quadro temporal sobreposto a estes dois. Aqui, o tempo é marcado por projetos que começam e por projetos que acabam. Um após o outro. Um em paralelo com outros. Desde que regressei a esta terra, com outras roupagens, cada ano tem trazido mais e mais destas marcas.

A transição entre anos que ocorreu há um par de semanas não foi diferente. Continuando alguns projetos, começando outros, concluindo ainda outros.

Lendo e comentando uma versão quase final de um livro em preparação sobre a criação de jogos de tabuleiro sobre temas históricos, com o foco em jogos sobre conflitos e guerras. Uma área que aprecio deveras, e toda uma reflexão e aprendizagem durante o processo. Uma segunda experiência do género, após Wargaming Experiences II - Discussions, da autoria de Natalia Wojtowicz.

Escrevendo de raiz um novo livro de regras, para um jogo que será em breve numa plataforma de financiamento coletivo ao alcance dos vossos dedos. De um ficheiro em branco e uma sessão de aprendizagem do jogo às regras completas. Organizando e otimizando. Aperfeiçoando frases e palavras. Construindo imagens e exemplos. Procurando facilitar o processo de iniciação ao jogo, para quem o descobre pela primeira vez, e disponibilizar uma referência útil, para quem a ele regressar. Deixando que a criação brilhe por si. Um desafio sempre bem-vindo, que traz consigo uma grande liberdade de escolha.

Trabalhando nas fases finais de mais dois: Unconscious Mind da Fantasia Games, e Apex Legends: The Board Game da Glass Cannon Unplugged.

Fazendo trabalho de consultoria e edição para outro. Um jogo já financiado através de uma campanha muito bem gerida e com elevado sucesso no Kickstarter. Um jogo belo e com mecanismos de jogo intrigantes, repletos de espaços variados de decisão. No cerne do trabalho, uma discussão profunda sobre como melhor comunicar todas as facetas e nuances, de modo a suavizar a curva de aprendizagem e contribuir para a melhor experiência possível.

Editando um outro livro de regras. Este para um jogo de lançar dados e traçar, com algumas características de jogo narrativo, desenrolando-se num ambiente Lovecraftiano. Com muita liberdade concedida para a reestruturação, este pode ser a primeira de uma séria de colaborações abrangendo diferentes géneros. A seguir!

E uma nova tradução para português, fiel ao início desta caminhada. É sempre uma alegria contribuir para que chegam às mesas mais jogos em português e constatar a aposta das editoras num mercado nacional em crescimento. A colaboração com o estúdio belga de tradução The Geeky Pen é já uma das colaborações de mais longa data, e o portfólio de jogos traduzidos aumenta de ano para ano.

Haverá mais fragmentos para vir. Descontinuidades dentro de um contínuo.