27 de fevereiro de 2021

Days of Ire: Ep.7 - Budapeste 1956 e mais além

 

“A 30 de Outubro, o cardeal Mindszenty foi libertado (…). O governo de Nagy anunciou a realização de eleições livres. O coronel pôs as suas tropas à disposição do governo.”
Martin Gilbert, “História do Século XX” 


Days of Ire: Budapest 1956 termina neste dia 30 de outubro. No entanto, este não foi o final da história da revolução húngara. Um enorme contingente de tropas soviéticas cruzou a fronteira húngara a 1 de novembro, deslocando-se em direção a Budapeste. Imre Nagy nomeou um novo governo e retirou a Hungria do Pacto de Varsóvia. O coronel Pál Méter foi promovido a general e tornou-se Ministro da Defesa. Ergueram-se barricadas por toda a cidade e as pessoas preparavam-se para lutar. E o combate aconteceu. Sem sucesso. As forças soviéticas rapidamente controlaram Budapeste. Méter e Nagy foram presos e mais tarde, em 1958, executado.

Durante a revolução foram mortos mais de 2500 húngaros e 700 soldados soviéticos, e 200 000 húngaros tornaram-se refugiados (fonte: Wikipedia). János Kádár, o novo chefe de estado, permaneceria no cargo durante mais de 30 anos, quase até à queda do Muro de Berlim e ao colapso da União Soviética.


Pesquisando nos meus livros, encontrei informação sobre o posicionamento do Leste e do Oeste.




Os líderes ocidentais não pareciam estar preparados para um movimento popular interno desta dimensão. Como Henry Kissinger reflete, no seu livro Diplomacia, que contém um capítulo inteiro sobre estes acontecimentos, “Hungria – Sublevação no Império”, uma explosão destas não tinha sido antecipada, apesar de toda a retórica americana sobre “libertação”. Washington permaneceu em silêncio mesmo quando trabalhadores e estudantes lutavam nas ruas contra tanques soviéticos. O apelo ao Conselho de Segurança da ONU não surtiu efeito, uma vez que, à data da votação de uma resolução, os tanques soviéticos dominavam Budapeste. E a Realpolitik impõe-se: insistir nos princípios, corretos, poderia ter empurrado os dois blocos para uma guerra, e mesmo para uma guerra nuclear.




Para perceber melhor o estado de espírito soviético, e o impacto destes acontecimentos ao longo das décadas seguintes, vale a pena ler a biografia de Gorbachev escrita por William Taubman. 

Por altura da revolução, Yuri Andropov, que mais tarde fomentou a ascensão de Gorbachev, era o embaixador soviético em Budapeste.

Andropov, que apelou à intervenção enviando fotografias de corpos dependurados de comunistas húngaros, desenvolveu o que alguns designam por “complexo húngaro”, o receio de que revoluções das bases conduzissem a governos populares. Ele sabia que, ao contrário da versão oficial, a revolta não fora instigada do estrangeiro, mas sim um levantamento genuíno da população, e do proletariado, contra o regime. E por esta razão foi apologista da tese das reformadas controladas, de cima para baixo, de forma a evitar potenciais rebeliões.

Quase trinta anos mais tarde, em meados da década de 1980, Gorbachev afirmou perante o Politburo: "Os métodos usados na Checoslováquia e na Hungria já não são bons; não irão funcionar!”, declarando pela primeira vez que a força militar não seria usada para manter o controlo sobre a Europa de Leste. 

Mais, ele não considerava a maioria dos líderes dos países da Europa de Leste como seus iguais e capazes para a diplomacia moderna, com exceção de Jaruzelski, na Polónia, e de Kádár, já doente, na Hungria. Mas a mensagem não passava de forma clara no exterior, e os líderes continuavam a acreditar numa intervenção soviética, caso necessário, para se manterem no poder. 

Do outro lado da cortina, o Ocidente mantinha-se cético quanto às intenções reais de Gorbachev.



                            Wikipedia                                              
                            Fonte: Hungarian State Security Archieves                                 


Pouco sabia sobre a Revolução Húngara, e sobre o seu impacto, quando comecei este projeto. Não muito mais do que uma ideia vaga de combates de rua, com pessoas comuns de um lado e blindados do outro. De facto, enquanto crescia, a história da Europa de Leste posterior à Segunda Guerra Mundial não constava das matérias das aulas de história, e seriam mais comuns referências, noutros meios, a Dubcék e à Primavera de Praga de 1968.

Adicionalmente, e durante um determinado período, encontrava-me mais atraído pelas batalhas abertas da Segunda Guerra Mundial, na Europa, no Norte de África e no Pacífico, mesmo enquanto acompanhava a política da Guerra Fria em finais da década de 1970 e início da década de 1980, pontuada, entre outros, pelos boicotes às Olimpíadas de Moscovo (1980) e Los Angeles (1984).

Tenho memórias mais vivas do final da década de 1980, com a ascensão de Mikhail Gorbachev, a queda do Muro de Berlim, a subsequente reunificação da Alemanha e o colapso da União Soviética.


Isto foi muito mais do que uma experiência de jogo, pois tornou-se uma experiência de aprendizagem, não apenas dos acontecimentos da Revolução Húngara, mas também das linhas e dos nós que mantêm a teia da História intacta, ligando passado, presente e futuro.


A cena internacional é hoje muito diferente da daqueles outros tempos em que a Guerra era Fria, a Cortina era feita de Ferro, e Berlim estava dividida por um Muro, reduzindo agora as possibilidades de ocorrerem intervenções externas diretas.

No entanto, não tem havido escassez de conflitos internos, em anos recentes, com as pessoas mobilizadas nas ruas, blindados a ocuparem o centro das cidades e militares a intervir, como no Irão (2009), Egito (2011), Ucrânia (2013), Bielorrússia (2020), ou Birmânia (2021), para mencionar alguns.

E a Polónia e Hungria, agora membros da Uniões Europeia, estão novamente em consonância, mais por razões indesejáveis: estão sujeitas a escrutínio apertado e foram desencadeados contra elas, em 2017 e 2018, respetivamente, procedimentos ao abrigo do Artigo 7 do Tratado da União, significando que se considera existir um sério risco de incumprimento dos valores fundamentais sobre os quais a UE se baseia.


A História está continuamente em construção!


26 de fevereiro de 2021

Days of Ire: Ep. 6 - O desfecho da revolução

 

“Passamos a noite, sem pensar em dormir, ajudando a descarregar e a carregar camiões no posto húngaro de alfândega. Quase esqueceremos que era suposto sermos jornalistas, e que havia uma história noticiosa. É tão mais do que isso …”
[Tradução] Frederick ("Fritz") Hier, A Hungarian Diary, 28 October, ao serviço da Radio Free Europe


Zsombat,  Október 27 

Muito longe, do outro lado do Atlântico, havia apelos ao Conselho de Segurança da ONU. Um sinal de esperança. Mas a política internacional movimenta-se demasiado lentamente para quem está no terreno.

Ao mesmo tempo, surgia agora uma oferta de amnistia sobre a mesa, concebida para parar a revolução ou, pelo mesmo, semear a incerteza. A proposta teve os seus efeitos e, entre nós, Valéria optou por abandonar a luta.

Ouvíamos dizer que, do outro lado da barricada, havia também atiradores furtivos a retirar, mas tudo estava demasiado enevoado.




A velha camioneta continuava a cruzar as ruas de Budapeste, e lá íamos nós outra vez, Imre e eu, à Universidade, buscar Ferenc, a caminho de Csepel.

Ferenc é um génio com aparelhos de comunicação, e assim conseguíamos improvisar emissões de rádio, para espalhar a voz da revolução. Ainda para mais, nós sabíamos que as pessoas escutavam ansiosamente a rádio e que confiavam em nós. O nosso moral nunca tinha sido tão elevado, apesar de todas as adversidades. 

A Passagem Corvin era agora um dos nossos bastiões, com civis armados a assegurar o seu controlo.
No entanto, a troca de tiros com as milícias era recorrente, à medida que avançávamos através da cidade, e acabei por ser novamente ferido.


Vasárnap, Október 28



Um vislumbre de esperança, com tréguas a serem declaradas. Esperávamos que as trovas soviéticas retirassem, abrindo espaço para que nós, os húngaros, tomássemos o destino nas nossas mãos. Mas não seria desta. As tréguas foram quebradas e os tanques soviéticos fizeram a sua reentrada em pelo menos quatro locais. Os acontecimentos tornam-se mais sombrios.

Há ainda mais forças blindadas a chegar, enquanto que os líderes do partido abandonam o País, e também ao HWPP chegam mais reforços.

Estamos a ficar em inferioridade numérica. Estamos a ficara encurralados.

A Rádio Europa Livre continua a proporcionar uma frágil luz neste dia negro, mas não temos a noção do efetivo impacto da sua ação, e o relógio parecer bater mais rapidamente.




Deslocamo-nos agora para a Praça Blaha Lujza, mais perto das forças inimigas, quando um novo combatente, Péter Hajas, se junta ao grupo. Enquanto nos movíamos, um tanque abriu fogo, e fui atingido por estilhaços. Rapidamente fui tratado no local, graças à mala de primeiros-socorros que transportávamos. Pelo menos estava em condição suficientemente boa para sair dali para fora.

Conseguimos escapar e juntámo-nos, com Ferenc e Péter, a um novo protesto que decorria junto à Estátua de Bem. Sempre a jogarmos ao gato e ao rato. Mas estes protestos eram sempre importantes para manter um nível elevado de apoio, ao mostrar que o poderio militar não era suficiente para nos quebrar.


Hétfő, Október 29

Continuávamos a ser procurados por pessoas que queriam participar nos protestos, nas manifestações, e nas lutas. Desta vez foi János que veio ter connosco, com a sua carrinha.

Tentávamos aproveitar ao máximo a confusão que parecia ter-se apoderado das tropas inimigas, que se deslocavam para trás e para a frente, descoordenadas. Precisávamos apenas de um derradeiro impulso para manter o controlo popular sobre os acontecimentos que decorriam nas ruas de Budapeste. Mas mas do outro lado, forças continuavam a acumular-se. E sabíamos também que havia ainda mais atiradores furtivos no nosso encalço.




Ouvimos dizer que a situação em Kossuth era muito má, com as armas a disparar sem freios, muitos feridos ou mortos, um banho de sangue. Pegámos em todo o nosso abastecimento médico e corremos para lá. A situação era crítica, mas conseguimos ajudar uma boa dose de pessoas e, até, desviar um tanque que se encontrava nas imediações.

Mesmo com tudo isto, não havia tempo a perder, e tinha de me encontrar, em breve, com Marta, no Astoria, onde poderíamos contar também com a ajuda de Ilóna, uma especialista em emergência médica. Havia tanques nas proximidades, mas evitamo-los.




Todos sentíamos que era agora ou nunca. Sabíamos que a vitória era possível. Corríamos, passando junto à Rádio, a Passagem Corvin, e de volta à Universidade.

Ter Ilóna connosco foi essencial uma vez que, junto à Universidade, uma ambulância fora atingida, e era necessário prestar auxílio. A nossa equipa enfrentou, com sucesso, mais um teste.
 
Novamente no ponto de partida, na nossa Universidade. O sol põe-se, neste outubro ameno, a noite cai sobre Budapeste. Passara uma semana, era difícil recordar todos os momentos de frenesim, e desligar de tantas imagens e sons cravadas nas nossas mentes. Eu não estava bem, já que a movimentação e ação constantes não permitiam sarar as feridas em condições. 


Kedd, Október 30 



Chegara o tempo de efetuar uma avaliação séria da situação.

Apesar das feridas e dos combatentes perdidos - Margit, Júlia, István -, conseguíramos efetuar ações decisivas por toda a cidade, resolvendo com êxito a maior parte das situações críticas e a maioria dos confrontos.

Estávamos tão perto de alcançar a vitória …

No entanto, havia demasiadas milícias em operação, e as pessoas receavam, cada vez mais, sair para a rua. A movimentação era cada vez mais difícil. A pressão armada não mostrava sinais de esmorecer. Os recrusos começavam a escassear.

E se nos tivéssemos envolvido mais na luta armada?
E se tivéssemos atacado mais a milícia?
E se …

A realidade abateu-se sobre nós, o nosso moral esvaiu-se, sabíamos que já não valia a pena continuar.

A revolução fracassara.


25 de fevereiro de 2021

Days of Ire: Ep. 5 - Juntei-me à revolução!

 


“De acordo com o Artigo 34 da Carta, os Governos de França, do Reino-Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, e dos Estados Unidos da América, solicitam a inclusão, na agenda do Conselho de Segurança, de um ponto intitulado “A situação na Hungria”, e solicitam ainda que convoque uma reunião urgente do Conselho de Segurança para apreciação deste ponto.”
[Tradução] Carta ao Presidente do Conselho de Segurança, 27 de outubro de 1956


Foi uma noite agitada. Éramos mais de 2000, juntos no encontro na Universidade, e quando a razão para a permanência das trocas soviéticas na Hungria foi questionada, o ambiente começou a mudar. Sentindo-nos com poder, o nosso foco transferiu-se das questões estudantis para a democracia e verdadeira independência.  Pouco depois estávamos a redigir as nossas exigências!


Kedd, Október 23




Há notícias recentes. Tanques e milícias foram avistados nas ruas. Há também relatos, dispersos por Budapeste, de disparos de atiradores furtivos.

Ficámos a saber que Zhukov tinha ordenado às forças soviéticas que ocupassem o centro da cidade. Duas unidades blindadas foram detetadas perto da Passagem Corvin e da Estátua de Bem. Mas cresce o apoio popular às nossas ações, dissipando as dúvidas iniciais, e o nosso moral é reforçado. Ouvimos agora dizer que Imre Nagy regressou ao poder! Entretanto, as multidões queimam propaganda, sinal de que a guerra da informação está ao rubro.

Deixei a Universidade e caminhei ao longo do Danúbio, em direção à Estátua de Bem, carregando comigo algumas “garrafas”.




À chegada encontrei-me com Júlia e, de facto, ali estava um tanque enorme no meio da rua, ameaçando a multidão. Assim que chegámos, abriu fogo! Tivemos sorte em não ser atingidos. Não era um momento para segundos pensamentos, era um momento para ajustar contas.

Tínhamos ambos cocktails Molotof nas mãos, aproximámo-nos tanto quanto possível, e lançámos os cocktails para o tanque, que ficou em chamas. Apenas nessa altura tomámos consciência, pela primeira vez, que até as todo poderosas forças soviéticas poderiam ser derrotadas nas nossas ruas, com pouco mais do que mãos nuas!

De seguida, ainda a tremer, dirigimo-nos juntos à Praça Széna, onde Marta Wawelska, uma amiga comum, se juntou a nós, também ela pronta para caçar tanques.

Mas a milícia e os atiradores furtivos andavam à nossa procura, depois da nossa ação em Bem. Mais uma vez escapámos ilesos. Não sei por quanto tempo conseguiremos evitar as balas…


Szerda, Október 24 

Foi imposto o recolher obrigatório, mas não seria isso que nos iria parar. Tínhamos apenas de encontrar novas formas de nos deslocar. Inesperadamente, algumas unidades de milícia retiraram, dando a entender que existiria confusão e hesitações nos seus líderes. Talvez fosse possível pressionar um pouco mais, quem sabe, e elas depusessem as armas.

Num ato de desobediência, cantava-se o hino nacional junto à Estátua de Bem. Imre, que se encontrava no local, aderiu de imediato à nossa fação. Daria jeito para angariar provisões. 

Quase na mesma altura, István Kopasz aderiu ao movimento, na Universidade, contribuindo com o seu à-vontade com armas ligeiras e munições.

Enquanto Péter Veres lia o manifesto, em público, István juntou-se a nós na Praça Széna, e Júlia e Marta dirigiam-se para Kossuth, em busca de tanques soviéticos.

Os nossos números aumentavam constantemente, as nossas capacidades diversificavam-se, e podíamos sentir o crescente apoio popular.




No momento em que a milícia invadiu a praça, István abriu fogo e atingiu dois deles. Não poderia ter chegado em melhor altura, mas temíamos que a situação pudesse entrar numa espiral descontrolada, provocando inúmeros mortos e feridos, muitos dos quais seriam companheiros civis. No entanto, todos sentíamos que já não era possível voltar atrás.




Havia pessoal médico em Széna, tratando feridos sem cuidar de saber de que lado estavam, qual a sua nacionalidade ou uniforme, e arriscando a vida ao fazê-lo. Um médico tinha acabado de ser ferido por tiros disparados indiscriminadamente.

Tempo de continuar a andar, pois é má ideia ficar demasiado tempo no mesmo sítio. István e eu voltámos à Estátua de Bem, onde se encontrava Imre, e os três fomos até à Praça Kossuth. Júlia e Marta já lá estavam e tinham assinalado mais um tanque soviético a abater.

O vento soprava de feição e, pelo segundo dia seguinte, estoiramos com um tanque, mais uma vez sem quaisquer baixas do nosso lado.




No entanto, o maior perigo do momento não provinha dos tanques imóveis nas ruas, mas dos atiradores furtivos escondidos nos edifícios mais altos. 

As nossas ações violentas não passavam despercebidas e, de alguma forma, tinham conseguido localizar-nos. Umas tangentes, até ser atingido. Apenas duas feridas superficiais, mas que tiveram o condão de afetar o moral. Sabíamos quão depressa tudo poderia acabar…


Csütörtök, Október 25 

Boas notícias vindas do exterior! Parece que havia algum envolvimento da CIA por aí. Será que os Americanos, finalmente, vão fornecer apoio a sério no terreno, armas, abastecimentos, informação? Isso poderia mudar, de vez, a maré a nosso favor.

Decidimos, entretanto, ir ao Astoria, onde se nos juntou Valéria Pille. Era altura de reunir uma equipa e atacar de novo.

Assim, fomos uma vez mais à Universidade, onde Imre iria ficar algum tempo, organizando mais uma fornada de abastecimentos. Sabíamos poder contar sempre com o apoio dos nossos colegas estudantes, e continuamos também a insistir para que as nossas exigências fossem escutadas.

Valéria convidou Margit para vir connosco, e os três partimos em busca de blindados, desta vez indo por Csepel.

Houve disparos da Milícia, quer em Csepel quer na Universidade, mas sem consequências.


Penték, Október 26 

A situação geral continuava indefinida. Por um lado, parecia haver divisões no campo soviético, em que uns não eram a favor da intervenção militar e buscavam outro tipo de solução. Por outro lado, os blindados estavam mais ativos do que nunca no terreno, provavelmente tirando partido da cobertura de um bloqueio noticioso, destinado a evitar o aumento da pressão internacional.




Para o melhor, a revolução tinha agora o seu próprio blindado! Acabado de chegar à Passagem Corvin! Continua a batalha pelo controlo das ruas, e estamos ansiosos por as libertar da presença dos blindados soviéticos.

Por isso fomos para Corvin, mais determinados do que nunca, prontos para uma nova tentativa contra os blindados soviéticos. E tivemos êxito! O terceiro, graças ao esforço combinado com Margit and Valéria. Mas foi um sucesso de pouca dura, já que Margit foi atingida com gravidade na troca de tiros que se seguiu.




Mais tarde, nesse mesmo dia, ainda perto de Corvin, juntou-se a nós Ferenc, um perito em comunicações. Fomos uma vez mais à Universidade, o nosso ponto focal para reagrupamento e reorganização.

Seguindo uma sugestão de Ferenc, começámos a remover dos edifícios, sempre que possível, a estrela vermelha de cinco pontas, como uma afirmação pública de que a era do controlo soviético de Budapeste chegara ao seu final. 



É preciso continuar em movimento, pensei!

Desta vez, atravessei a cidade na caixa aberta de uma camioneta, em companhia de Imre e Valéria. Fomos a Széna, onde organizámos um grupo de combatentes, a quem ensinámos a arte de construir barricadas de rua, recorrendo ao que se encontrar à mão.

Não sem mais uma troca de tiros com a milícia, escapando uma vez mais à justa. Mas agora estava bem armado, com uma PPsh-41, uma pistola-metralhadora, ironicamente, de fabrico soviético, a quem eles chamavam papasha.

Encontrava-me ainda a recuperar do tiroteio quando soube que Júlia e István tinham sido abatidos por atiradores furtivos, algures para os lados da Praça Kossuth.

Quatro dias, e a linha que separa vida e morte vai ficando cada vez mais fina.


Continua ...


24 de fevereiro de 2021

Days of Ire: Ep.4 - Na mesa

 


Camarada Zhukov: o Camarada Mikoyan está a agir inadequadamente, empurra-nos para a capitulação. Temos de insistir numa posição firme. Camarada Shepilov: o passo foi extremo, mas correto. O poder real está nas tropas. Fazer mais concessões seria considerado fraqueza. Camarada Furtseva: o Camarada Mikoyan está, aparentemente, enganado sobre Nagy. Eles libertaram 1,000 dos que tinham sido presos. Camarada Khrushchev: Mikoyan está a atuar como disse que o faria. O Camarada Mikoyan apoiava uma posição de não intervenção, mas as nossas tropas estão lá.
[Tradução] Notas de trabalho da sessão do CC do PCUS, 26 october 1956


Abro a caixa, retiro e desdobro o tabuleiro de jogo, um mapa de Budapeste, estendendo-o sobre a mesa. De seguida, pego nos diferentes componentes e coloco-os sobre o mapa: vários conjuntos de cartas, dois dados, peças de diferentes formas e cores - retângulos verdes, triângulos e quadrados castanhos, hexágonos vermelhos, octógonos com cor de laranja-, três semiesferas transparentes, fichas de jogador, círculos com as palavras Ação, Movimento Livre, Inativo, gotas pretas sobre círculos vermelhos. Componentes abstratos. Componentes e produção de grande qualidade, num trabalho da Mighty Boards.

Lentamente o seu significado começa a mudar, puxando-me através do espaço e do tempo, em direção a Budapeste e ao ano 1956.

Fotografias a preto e branco no tabuleiro, mostrando edifícios, pessoas, estátuas, tropas. Baralhos de cartas ostentado etiquetas como General Zhukov, Agência de Proteção do Estado, Cartas Revolucionárias, Dias da Revolução, Revolta Armada, Mudança da Maré, Acontecimento.  Retângulos verdes com silhuetas de homens e mulheres, com nomes como István Kopasz e símbolos como munições, cocktails Molotov, rádios. Os triângulos e quadrados castanhos com silhuetas de soldados, os hexágonos vermelhos exibindo blindados, os octógonos com cor de laranja mostrando barricadas. As gotas, bem, as gotas são gotas, de sangue.



Dentro da caixa, não um, mas três manuais. Um com a mesma imagem da caixa: a mulher segurando uma espingarda na mão esquerda, a bandeira Húngara despojada do brasão na direita; em fundo, quase como numa pintura a preto e branco não fossem as chamas, blindados soviéticos são incendiados, numa batalha de rua; o verde, vermelho e branco da bandeira omnipresentes na composição gráfica, como elemento unificador. Uma bela obra de arte de Kwanchai Moriya. Assim, como a ilustração das cartas Soviéticas, também da autoria de Kwanchai, as cartas revolucionárias ilustradas por Katalin Nimmerfroh, e a conceção gráfica de Sami Laakso.

Este é o manual introdutório, que contém uma visão geral do jogo, a preparação para todos os três modos de jogo, um relato da revolução, e um conjunto de anexos com informação detalhada sobre todas as cartas e todos os combatentes.

Depois, há o manual verde, as regras Zhukov, para o jogo a solo ou em cooperação, onde o ou os jogadores assumem o lado revolucionário.

O terceiro é o manual vermelho, as regras de conflito, em que um dos jogadores assumirá o controlo das forças Soviéticas e do Estado.

Manuais em verde e vermelho, bem paginados, com espaço para respirar, instruções claras e exemplos adequados. E com muitos pequenos detalhes que enriquecem a experiência de jogo e conduzem os participantes numa viagem através da história e da cultura: fotos de arquivo, a preto e branco, pormenores históricos e a fonética dos nomes húngaros.



O mapa da zona central de Budapeste, com o rio Danúbio e as muitas pontes. A Estátua de Bem e a Universidade de Tecnologia numa das margens. Na outra, a Praça Kossuth, junto ao Parlamento e a edifícios que albergam vários Ministérios. Aquartelamento Killian, Passagem Corvin, Teatro Corvin. A Rádio e o Museu Nacional. Praça Blaha Lujza e Praça Stalin. Nomes e locais ainda pouco familiares, à espera de que nos aventuremos por aquelas ruas.

Uma iconografia simples, mas muito eficaz, assinala no mapa o que é preciso saber para colocar as forças iniciais, mobilizar reforços no final de cada dia, manter o registo dos níveis de apoio, de moral, e dos dias da semana. Em conjunto com o verso do manual, que contém uma folha resumo, possibilita um acesso expedito à informação básica necessária para uma partida fluída.




Terça, 23 de outubro de 1956. Terça, 30 de outubro de 1956. Uma única semana. Foi o tempo que mediou entre o início da revolta e o cessar-fogo, acompanhado da retirada das forças Soviéticas. Sete dias. Sete rondas, uma para cada dia, colocando-te à tua prova, com o desfecho a ser avaliado no dia 30.

Para vencer, os jogadores revolucionários têm de sobreviver e de manter o moral até ao final da partida. Mas isso não será suficiente para assegurar a vitória, uma vez que os revolucionários estarão empenhados em resolver os acontecimentos que se desenrolam por toda a cidade. Não poderão ficar mais de quatro acontecimentos por resolver a 30 de outubro! Assim, será também numa corrida contra o tempo, já que a dinâmica é crucial em todas as revoluções, para angariar apoio, quer interno quer externo. A vitória pode ser alcançada antecipadamente caso se consiga repelir com sucesso, para fora da capital, toda a milícia e todos os blindados soviéticos.

Mas lembra-te que Vitória não é um estado estacionário e definitivo. Aqui, o significado histórico é que as forças soviéticas acordaram um cessar-fogo, face ao número crescente de baixas e ao aumento da pressão internacional, retirando do país, apenas para regressarem em força, poucos dias depois.




Só tendo ainda jogado a solo, comecemos então pelas regras Zhukov, que se usam também para o modo cooperativo. Zhukov, General Georgy Zhukov. Encontramo-nos de novo! Na última vez, o campo de batalha era Estalinegrado, o inverno estava a chegar, e a luta pela cidade, contra os exércitos alemães, era intensa. O jogo era Pavlov’s House, mas isso é um outro capítulo. Anos mais tarde, em 1956, Zhukov era Ministro da Defesa da União Soviética e comandava as forças soviéticas na Hungria. Ele será o nosso adversário.

Cada dia inicia-se com a fase soviética, determinada por um baralho específico de cartas, o baralho Zhukov. Algumas cartas serão favoráveis à revolução, enquanto outras beneficiarão o lado soviético, em função da cor da carta, do nível geral de apoio à revolução, e do próprio dia. Mantém em mente que o apoio a uma revolta é fulcral para se ter alguma hipótese de sucesso face ao poder vigente, militarmente suportado.

Cada carta contém três possíveis ações, correspondendo a dias diferentes desta semana. A que será desencadeada depende do próprio dia, permitindo assim incorporar a evolução de elementos reais que aconteciam longe da vista, e que caracterizaram aqueles dias.




As cartas Zhukov podem também desencadear acontecimentos, alguns dos quais em locais específicos de Budapeste, caso em que são colocadas sobre o mapa. Estes são os eventos que nós, enquanto revolucionários, teremos de resolver durante a partida. Mais ainda, alguns acontecimentos podem estar interligados, afetando os desfechos subsequentes.

Um aspeto importante é que algumas cartas deslocam o apoio para o lado revolucionário, enquanto outras o fazem pender para o lado soviético, e o mesmo acontece com o moral. Coisas para equilibrar e tentar usar a nosso favor.

As quatro cartas reveladas no início de cada irão, assim, modificando o cenário em Budapeste, exigindo constantes ajustes táticos.

Mais um pormenor gráfico delicioso: os locais estão representados no mapa por fotografias a preto e branco; as cartas de acontecimento que ocupam esse locais têm um fundo com exatamente a mesma foto, mantendo-a assim completamente visível, mais parecendo que as instruções estão meramente sobrepostas à imagem.




Depois, é connosco!

Como revolucionários, percorreremos Budapeste, recrutando combatentes para a causa, combatendo milícia e blindados, resolvendo acontecimentos.

Os nossos recursos são representados por cartas, que facilitam o movimento (Transporte), a guerra da comunicação (Jornais, Fuga de Informação), ajuda da população (Ajuda, Abastecimento de Alimentos, Conjunto de Primeiros Socorros), armas (Cocktails Molotov, Pistolas, PPSH-41), e barricadas de rua (Construir Barricadas).




Iremos ativar e mobilizar combatentes, porque a revolução não é um combate de uma só pessoa, e depende, não só do número, mas também da presença de capacidades complementares.

Os homens e mulheres que se vão juntar a nós não são pessoas anónimas. Têm nomes, contribuem com recursos específicos e têm capacidades próprias. Aspeto importante: precisamos primeiro de os reunir, de os convencer a aderir à causa, de os organizar em equipa. Bem vês, na madrugada de 23, muitos estão prontos a lutar, mas esperam ainda por um líder a quem seguir. 

Assim que entram na luta, tornam-se alvos a abater para a milícia e para os atiradores furtivos, como nós também o somos. 




Ao longo do dia tentaremos resolver os acontecimentos que se desenrolam em vários locais, reunindo e usando os recursos que temos ao nosso dispor – nas nossas cartas -, e os recursos dos combatentes ativos no local, ou dos que se deslocam connosco.

Exigências estudantis na Universidade de Tecnologia. Tornaram-se uma realidade na noite de 22 para 23 de outubro. Local: a Universidade. Recursos necessários: abastecimentos alimentares (3) e comunicação para espalhar as notícias e evitar a propaganda. Recursos angariados: comida suficiente graças a Imre Colos, e notícias fiáveis graças aos jornais. Desfecho: um aumento no apoio popular.




Entraremos em combate contra a milícia e os blindados soviéticos colocados nas ruas de Budapeste. Sim, isto também é um combate quarteirão a quarteirão, envolvendo armamento pesado, atiradores furtivos, emboscadas e barricadas. 

Portanto é preciso ter as armas e munições apropriadas, no momento certo. E manter-se em constante movimento, para escapar à perseguição dos atiradores furtivos.

O ataque aos blindados soviéticos, encurralados nas ruas estreitas e fora do seu ambiente natural de operações, é um fator decisivo, quer em termos de aumento do moral, quer em termos do processo soviético de decisão.




E este é um fator de grande importância, uma vez que moral elevado confere acesso a mais recursos, enquanto que uma quebra extrema de moral conduzirá inevitavelmente a uma derrota imediata no campo de batalha e ao fracasso da revolução.




Mas o dia não terminará sem uma ação da temida Agência de Proteção do Estado.

Nos modos solo e cooperativo não se utilizará este baralho de cartas, sendo as ações da Agência substituídas por um movimento automático das milícias, quando na vizinhança do líder revolucionário, e dos atiradores furtivos, sempre um passo mais próximos.




Como resultado, atacarão o líder revolucionário, combatentes revolucionários ativos e barricadas, eventualmente causando baixas no nosso lado. Os combatentes podem ser abatidos, assim como o líder.

Para efeitos de jogo, os líderes poderão eventualmente ser curados, ao contrário dos combatentes. Decisões difíceis a tomar, quando é necessário decidir pelo envolvimento de combatentes que podem ser atingidos.



O modo cooperativo adiciona mais umas camadas a esta experiência, com o número de ações a efetuar em cada dia a ser uniformemente repartida entre os jogadores revolucionários. Aqui, a coordenação torna-se essencial, para manter os revolucionários a salvo, juntar os recursos necessários, lidar com múltiplos eventos, trocar recursos.

A experiência com as regras de Conflito, em que um jogador assume o comando das forças soviéticas, será ainda mais diferenciadora.

Dois novos conjuntos de cartas entram em jogo, as cartas com os cabeçalhos noticiosos (que substituem o baralho Zhukov) e o baralho SPA (Agência de Proteção do Estado), com o jogador soviético a ter de ponderar bem as suas opções.

Para recolher e desencadear eventos, precisa primeiro de obter pontos de comando. No entanto, no caso das cartas vermelhas, que favorecem o lado soviético, a opção é de uma ou outra: usar o efeito das cartas ou recolher pontos de comando. Em contrapartida, para as cartas verdes, que favorecem os revolucionários, os pontos de comando só são obtidos quando as cartas são ativadas. E só após isto é que é possível usar os pontos de comando para obter e desencadear acontecimentos através de Budapeste. Não é fácil subjugar uma revolução.


Agora, imagina, por um instante, que hoje é hétfő, segunda-feira, 22 de outubro de 1956. É noite, e encontras-te na Universidade de Tecnologia. Os estudantes estão reunidos e discutem as suas exigências. Amanhã desceremos às ruas!


23 de fevereiro de 2021

Days of Ire: Ep.3 - Perspetivas de autor

 


"A Tricolor Húngara, sem o emblema comunista, flutua agora em muitos edifícios públicos e outros, por toda a cidade, enquanto multidões ordeiras, empunhando as suas bandeiras e entoando canções patrióticas, se movimentam à vontade. Sem controlarem o Governo, parecem estar tão perto quanto possível de controlar Budapeste."
[Tradução] Leslie Fry, Telegrama Confidencial, Budapest to Foreign Office, 25 de outubro 1956


Continuamos a conversa com Dávid Turczi, focando-nos agora no desenvolvimento de Days of Ire e nos desafios da criação de jogos que podem invocar histórias e memórias pessoais.

Interessas-te por assuntos históricos, em geral, e por jogos baseados na História?
Sempre gostei de temas históricos, sobretudo daqueles sobre os quais sabia umas coisas, fazendo-me sentir inteligente e “colocar tudo em contexto”. O Twilight Struggle e alguns bons filmes de suspense sobre a guerra fria tiveram o condão de suscitar em mim o gosto pela história posterior à Segunda Guerra Mundial.

Não aprecio jogos de guerra que são “simulações”, não jogo hexágonos-e-peças, e prefiro que o meu entusiasmo venha de algo mais do que muitos lançamentos de dados. Dito isto, um bom tema histórico, bem desenvolvido, que me possa ensinar umas coisas, tem boas hipóteses de me atrair, e de depois me fazer ler a Wikipedia.


Qual foi a motivação para criar um jogo baseado na Revolução Húngara de Outubro, e de prestar homenagem a todos que tomaram posição em 1956?
Era o 60.º aniversário, em 2016. Zsombor Zeöld, um amigo de um amigo, trabalhava no Ministério Húngaro dos Negócios Estrangeiros, sugeriu que criássemos um jogo (em que ele seria consultor para os pormenores históricos) e que tentássemos obter um financiamento governamental para a sua edição. 

Esse apoio acabou por cair (burocracias 😜), mas por essa altura já estávamos demasiado embrenhados no processo para desistir, e acabamos por publicá-lo com os meus amigos malteses da Mighty Boards (inicialmente conhecida como Cloud Island).


Ao abordar um tema destes, consideras que a distância temporal importa?
Provavelmente, dentro da equipa, eu era o menos inclinado para a história. O meu trabalho consistia em tornar o jogo equilibrado e fazer com que a estratégia importasse. No entanto, não estamos suficientemente distantes para olhar para as coisas de forma objetiva. Continuo a ouvir relatos sobre pessoas que disseram que o jogo trouxe de volta memórias trágicas da sua infância, mas que nos agradeceram pela abordagem, pelo que fico satisfeito por termos feito as coisas bem.


Tinhas já um conhecimento aprofundado dos acontecimentos, ou houve muita aprendizagem durante o desenvolvimento do jogo? Como efetuaram a pesquisa?
Tinha aprendido coisas básicas no secundário, lido um ou dois livros, falado sobre o assunto com o meu pai ao longo dos anos, mas não sou de todo um perito na matéria. O papel de Zsombor era criar “curiosidades históricas” que pudéssemos usar no jogo, e o de Mihaly era integrá-las.


Considero os jogos de recreação histórica conceptualmente mais exigentes, porque requerem um equilíbrio entre a história e o que é um jogo de tabuleiro equilibrado e jogável. Como foi o processo de definir que elementos deveriam estar no jogo (como lugares, acontecimentos, ações, mecanismos, personagens)?
Inicialmente tratava-se de inserir as “histórias interessantes” que Zsombor nos trazia, bem como os acontecimentos mais significativos. Mais para o final a situação inverteu-se, eu apresentava requisitos em termos de processo de jogo, e Zsombor tentava “encontrar uma história para”. Estávamos sempre a perguntar um ao outro “haverá algo mais que devêssemos mencionar?”.


Em muitos jogos sobre conflitos as unidades e as personagens são “anónimas”, noutros têm identidades fictícias, e ainda noutros, como Pavlov’s House, representam pessoas reais e têm nomes reais. Porque optaram por dar nomes aos combatentes revolucionários de Days of Ire?

Pretendíamos criar aquele sentimento pessoal, de modo a que te sentisses mal por sacrificar um combatente. De uma perspetiva puramente de mecanismo [de jogo], são literalmente escudos humanos, que podem receber os danos em vez de ti, mas não é assim que as pessoas pensam durante conflitos reais. Por isso, atribuímos-lhes características, e um nome, de modo a que te possas ligar a eles – “Lembras-te quando Károly salvou o dia trazendo-nos mais cocktails molotov?”…

Dito isto, queríamos evitar incluir no jogo a avó de alguém, pelo que adotámos o “inspirado por”. A maior parte das personagens representam algum revoltoso notável, ou alguém que fez um ato digno de registo antes de desaparecer do palco da história, mas alterámos todos os nomes por respeito aos mortos e feridos.


Os mecanismos e regras são mais simples do que nos jogos de guerra “clássicos” com que cresci, com centenas de peças, livros de regras extensos, e uma preocupação com escalas de tempo e de espaço.  Pode-se dizer que é mais guiado por acontecimentos do que uma típica simulação de combate. Que sensação procuravam?
O jogo baseado em cartas, do lado Soviético, foi inspirado pelo Twilight Struggle, enquanto que o lado Revolucionário era suposto ser uma variante ao estilo de um “Pandemic pesado”. Certamente não o que se espera de um jogo de guerra, mas que evidencia o nosso percurso diferente. 


O jogo inclui modos a solo e cooperativos, como revolucionário, e competitivo, em que um dos jogadores controla o lado soviético e do estado. Esta era uma intenção original, ou os vários modos foram surgindo durante o desenvolvimento?
Começamos pelo modo competitivo. O modo solo/cooperativo foi especificamente concebido para reproduzir a sensação de jogar pelo lado Húngaro face a um oponente real.


O jogo inclui fotos de arquivo, informação histórica de contexto, mais o belo toque adicional de ter a escrita fonética dos nomes húngaros, e um esquema de cores baseado na bandeira Húngara. Foram opções para reforçar a presença do tema e despertar curiosidade sobre os acontecimentos?
Isso foi a boa influência de Zsombor em todos nós 😊


Quanto tempo demorou o jogo a fazer?
Começámos no verão de 2014, e se bem me recordo o jogo foi lançado no Kickstarter em 2016. Foi quase autopublicado, uma vez que a Cloud Island era só uma pessoa e alguma ajuda extra, à data (David Chircop, com quem mais tarde trabalhei no Petrichor), pelo que nós dávamos indicações ao designer gráfico, ao artista, revíamos, tudo. Aprendi muito sobre o processo de edição com isto, com os nossos erros e com as manerias em que os corrigíamos… 


Porquê a continuação com Nights of Fire?
Brian Train, o criador de A Distant Plain foi um apoiante [no KS], e mencionou que tinha criado um pequeno jogo tático de guerra urbana sobre “a semana seguinte”, em que ocorreu a retaliação soviética. Assim, pedi-lhe para criar a sequela em conjunto comigo, e casei a sua abordagem tática com o meu jogo à base de cartas, inspirado nos jogos euro, e com processos de decisão de baixa sorte / elevada escolha.


Há algum projeto deste  género na calha, ou apenas à espreita?
Tenho um jogo de conflito, não histórico, a chegar, Defence of Procyon III (em distribuição daqui a poucos meses), que é um jogo de guerra de 2 contra 2, com aleatoriedade mínima e 4 fações com características únicas.


Muito obrigado pela disponibilidade e amabilidade, Dávid! 


Agora sabemos um pouco mais sobre Dávid Turczi, a pessoa por detrás deste e de outros jogos, tocámos ao de leve na superfície do processo de criação de jogos, no trabalho de equipa e na complementaridade de papéis, nas dificuldades da edição, na influência de jogos passados e na ligação a jogos que ainda não o são, nas ligações que se criam.

É tempo de continuar. É altura de entrar na caixa!


22 de fevereiro de 2021

Days of Ire: Ep.2 - Apresento-vos Dávid Turczi

Do perfil de Dávid Turczi no BoardGameGeek

 

“Enquanto a luta decorria no Edifício da Rádio, os blindados Soviéticos apareceram, pela primeira vez, em Budapeste, a 24 de outubro, cerca das 2 a.m., e em breve entraram em ação. No entanto, até às 9 a.m. não foi efetuado qualquer anúncio oficial da intervenção Soviética.”
[Tradução] Report of the Special Committee on the Problem of Hungary, UN General Assembly , 1957


A primeira vez que ouvi falar de Dávid Turczi, e não terá sucedido apenas comigo, foi provavelmente a propósito de qualquer coisa relacionada com Anachrony. O que se justifica facilmente: este jogo de 2017, que o ano passado entrou na minha coleção, tem sido um tremendo sucesso! Mas seria completamente injusto centrar os resultados que alcançou neste jogo apenas, já que Dávid é um autor prolífico, e este é apenas um de entre muitos, já publicados ou em desenvolvimento.

Para mencionar só algumas das suas criações, e sem qualquer critério particular, poderão ter ouvido falar de Petrichor, Trickerion, Venice, Rome & Roll, Dice Settlers, Kitchen Rush, Rush. M.D..  Caso joguem frequentemente em solitário, como eu, ou o façam durante a aprendizagem de um jogo, é muito provável que tenham já defrontado um dos seus muitos modos solo, concebidos para uma ainda maior diversidade de jogos.

Cortesia de Ludocreations
Se aprofundarem um pouco mais, poderão descobrir [redacted], de 2014, um jogo de nunca tinha ouvido falar antes da pesquisa efetuada para esta série. Pode parecer um tempo distante, mas passaram apenas sete anos! E esse foi o começo, com o mesmo trio de autores de Days of Ire: Budapest, 1956: Katalin Nimmerfroh, Dávid Turczi, and Mihály Vincze.

No seu conjunto, uma impressionante quantidade de trabalho em apenas meia dúzia de anos, trazendo a tantos muitas horas de entretenimento, alegria e intenso raciocínio.

O meu primeiro contacto com Dávid Turczi ocorreu numa troca de mensagens no Facebook: ele estava em mudanças e procurava vender um exemplar de Days of Ire! Nessa altura sabia um pouco mais sobre Dávid do que sobre Days of Ire, e como a minha lista de potenciais jogos era já suficientemente grande, acabei por passar na altura. Ou assim pensei, pois algo fora despertado, e o meu interesse pelo jogo continuou a crescer! Até que, em novembro passado, acabei por encomendar o jogo. Em simultâneo, o conceito e as ideias para uma série de textos começavam a ganhar forma.

E, então, passou-me uma ideia pela cabeça: “Não seria muito interessante ter a perspetiva do autor sobre as suas motivações, e abordagem, a esta representação de um período tão especial da História Húngara, da História do seu próprio País?”. Até porque Days of Ire e Nights of Fire são dois jogos de características singulares no seu portefólio.

Seria possível? Não conhecendo pessoalmente Dávid, tinha ficado com a impressão, através de entrevistas, vídeos de explicação de jogos e mensagem em grupos do Facebook, que ele permanecia uma pessoa muito acessível, sempre disposto a partir as suas opiniões, o que fazia de forma apaixonada. Para além disso, julgava ter detetado vários indícios de que Days of Ire and e Nights of Fire tinha um lugar especial entre as suas criações, e ele tinha uma vontade genuína de os tornar mais conhecidos do público.

Assim, porque não tentar marcar uma entrevista? No pior cenário não teria resposta. No segundo pior cenário receberia uma resposta negativa. Não havia muito a perder! Depois de um primeiro contacto acabei por enviar as perguntas entre o Natal e o Ano Novo (!), seguindo o esquema geral que já tinha usado para outras entrevistas: algumas perguntas escritas, organizadas e fragmentadas, para respostas escritas, já que a escrita é o meu meio de eleição. Bem, de facto não foram apenas “algumas” questões, mas uma data delas… talvez demasiadas, pensei, exigindo um bom pedaço de tempo a um criador ocupado, e para um blog de pequena audiência…

Um simples lembrete uma pequena espera depois, e tudo estava encaminhado! Em meados de janeiros as questões tinham respostas, não sem virem acompanhadas por um pedido de desculpas pelo tempo demorado, dado o volume de trabalho e pedidos de entrevistas a que dar resposta!

Vamos então conhecer um pouco de Dávid Turczi, nas suas próprias palavras e sorrisos!
 
Tradução da entrevista, realizada em inglês. 
Podem ver aqui a versão original.


Dávid, como te apresentarias de forma breve, bem, mais ou menos breve, como preferires, e restringindo, ou não, à área dos jogos de tabuleiro?
Olá, chamo-me David Turczi, tenho cerca de 33 anos de idade, nasci na Hungria, onde vivi durante 25 anos, e depois de uma temporada de aproximadamente 7 anos no Reino-Unido, vivo atualmente nos Países-Baixos. Era engenheiro de software (daquele tipo aborrecido, de empresas) mas abandonei essa área há 3 anos, dedicando-me a tempo inteiro à criação e desenvolvimento [de jogos]. O meu tipo de música favorito é rock progressivo dos anos 70, nos jogos de tabuleiro escolho sempre o amarelo, mas a maioria das minhas T-shirts são pretas. Espinafres são os melhores legumes para acompanhamento.


Foste sempre um adepto de jogos de tabuleiro? Podes partilhar uma recordação dos primeiros tempos?
Comecei na Universidade, há cerca de 12-13 anos. Algumas pessoas estavam a jogar Bang! por diversão, que depois se tornaram em sessões de Munchkin pela noite fora. As coisas tornaram-se mais sérias quando recebi Battlestar Galactica: The Board Game, como prenda (uma vez que o meu gosto pela série era bem conhecido). A minha primeira Essen Spiel [a maior feira de jogos de tabuleiro, que decorre anualmente na cidade de Essen] foi em 2012, onde comprei 14 jogos, quadruplicando a minha coleção.


Jogos em formato físico, digital ou ambos?
Comecei pelos físicos, depois passei aos digitais, e depois regressei aos físicos, que não voltei a deixar.


Como ocorreu a transição de jogador para criador de jogos, e para criador de jogos publicáveis/publicados?
A terceira expansão para BSG [Battle Star Galactica] demorou muito tempo a sair. Por isso tive de criar a minha própria expansão. E testá-la até à perfeição.

Um dia, um membro do meu grupo de jogos, Mihaly Vincze, regressou a casa depois das férias dizendo “criei um jogo!". Não pude evitar, tinha de o ajudar. Em conjunto com Kate, a minha companheira à época, nós os três passámos meses (anos?) a aperfeiçoar o jogo. Apresentámo-lo a alguns outros, sem sucesso, em Essen 2012, mas em 2013 conheci o homem por detrás da LudiCreations – então uma editora Finlandesa ainda a começar – e ele quis lançar o jogo. Aprendemos tudo ao longo do percurso, e o jogo foi publicado.

De repente éramos os “primeiros autores Húngaros com edição internacional”, e então uma empresa Húngara em fase de lançamento abordou-nos para “aconselhamento”. Foi assim que conheci Viktor Peter e Richar Amman, da Mindclash, e que lhes mostrei um jogo sobre viagens no tempo (então chamado Paradox Factory), e depois embarcámos num caminho de vários anos, que conduziu à edição de Anachrony, tornando-me famoso do dia para a noite 😊

Primeiro tive sorte, e depois trabalhei para isso 😊


Algumas lições, pensamentos ou tropeções ao longo do percurso, que queiras partilhar?
Sê atencioso, adapta-te aos outros, mas exibe sem vergonha aquilo em que és bom. 
Não interessa o que podes fazer, se ninguém souber o que é…


Como autor bem conhecido, sentes pressão para “concretizar”, e eventualmente para “adequar”, ou sentes que agora tens mais liberdade para seguir as tuas ideias?
Agora tenho muito mais liberdade. Não tenho de inventar um jogo, passar meses a aperfeiçoá-lo, marcar 10 reuniões, e depois ser rejeitado 11 vezes antes de alguém, algures, queira aquilo que tenho (mas que precisa que eu primeiro trabalhe ainda mais uns quantos meses). 

Agora avalio a minha ideia (ou como dizem – tomo um duche), e depois decido que editora quero contactar. Agendo uma reunião, exponho a ideia, e, se gostarem, passo algumas semanas a desenvolver a prova de conceito, que depois mostro numa segunda reunião, de apresentação. Então recolho as ideias deles, as críticas, etc., mas nesta fase, se a ideia original era boa, eles provavelmente assinarão um contrato, e a partir o problema é todo nosso.

Isto quer dizer que as minhas más ideias são rapidamente abatidas, e as minhas boas ideias são depressa melhoradas. E a fama traz acesso a voluntários, o que quer dizer que consigo fazer mais, com mais mãos. Claro que preciso de fazer concessões, e não ter de cada vez “o meu precioso bebé”, mas isso é apenas senso comum, até porque as excentricidades dos autores tendem a tornar os jogos (até os euros pesados em que tendo a trabalhar neste momento) difíceis de editar.


Há um dia típico, enquanto criador a tempo inteiro?
O despertador toca às 8h25, leio as notícias, arrasto-me para o quarto de banho, sento-me à frente do portátil pelas 9h30. 

Se for um dia de reuniões, provavelmente estarei no Google Meet das 10 até à hora de dormir (com umas pausas para almoçar, para a chegada da minha namorada a casa, jantar, festas ao gato, etc.).

Se for um dia de prototipagem, então ponho a passar umas séries de ficção científica que já vi centenas de vezes e dedico-me à tarefa entre a impressora, as tesouras e a cartolina.

Se for um dia de teste, então dou as boas-vindas aos jogadores entre as 10 e o meio-dia, e depois jogamos até às 6 da tarde, na companhia de boa comida de entregar ao domicílio 😊

E depois isto repete-se, 5 a 7 dias por semana 😊


Qual é a descrição mais adequada, no que se refere ao processo de criação e desenvolvimento de jogos: obsessivamente organizado, organizado, caos organizado, ou completamente caótico?
Caos organizado. Tenho uma lista de tarefas a fazer, com prioridades, tenho um Slack para cada editora, tenho pastas de Dropbox organizadas, e tenho um calendário Google rigorosamente preenchido com reuniões a não falhar. Mas o que acontece pelo meio é magia, loucura, e a vontade do Universo. 


E agora umas perguntas rápidas sobre jogos que gostes de jogar.

Um “velhinho” que tenha ficado na memória ou que ainda jogues de vez em quando.
Não jogo nada assim "tão antigo" 😊 Mas de entre os jogos que sobrevivem ao "deslumbramento do novo", diria que Glory to Rome é ainda o melhor, com outras menções honrosas para Caylus, Among the Stars, Eminent Domain.

Um jogo com temática histórica.
Sekigahara.
Imperial Struggle.
1960: The making of the President.

Um jogo ou modo solo feito por outros criadores.
Nunca jogo a solo.

O último jogo que jogaste.
Sem contar com testes foi Dawn of Peacemakers, de Sami Laakso, um jogo de guerra inverso embrulhado num jogo cooperativo assim para o ligeiro. O meu último "euro pesado" foi Kanban EV, de Vital Lacerda.

Um jogo que tenhas vontade de jogar no curto prazo.
É suposto jogar a nova versão de Tinner's Trail, de Martin Wallace, e estou curioso 😊


Há  mais para ouvir de Dávid, agora que vamos focar a conversa na conceção de Days of Ire, no episódio 2.