7 dias, 7 textos, abarcando o jogo propriamente dito e como veio parar à minha coleção, pequenas histórias e apontamentos laterais, perspetivas dos autores, como jogar, e a História subjacente.
Quem vem acompanhando este blog poderá reparar que esta é, de facto, uma segunda série. Em finais de 2019, inspirado pelos componentes e mecanismos do jogo Newton, e por leituras sobre a história do ensino superior, viajei através da Europa dos finais do século XVII. O resultado foi um trabalho de ficção com dez episódios, Em Busca do Conhecimento, com a forma de um relato de viagens na primeira pessoa, combinando vislumbres da História com elementos do jogo. Uma série, portanto, de natureza muito diferente da atual.
Chegou a altura de calçar umas botas robustas, recuar no tempo até 1956, e palmilhar as ruas de Budapeste, a capital Húngara. Os nossos guias nesta jornada serão três criadores de jogos húngaros, Mihály Vincze, Dávid Turczi, and Katalin Nimmerfroh, inspirados pelos eventos que ocorreram de 23 a 30 de outubro daquele ano, uma revolta popular contra o estado apoiado pela União Soviética, que ficou conhecida como a Revolução Húngara de Outubro.
Days of Ire: Budapest 1956 foi originalmente publicado em 2016, precisamente 60 após a Revolução. No jogo, podes escolher tomar parte na revolução, em solitário ou em cooperação com parceiros revolucionários, enfrentando um adversário virtual. Ou podes escolher um confronto entre dois lados, no qual os jogadores revolucionários farão face a um único jogador que assumirá o comando das forças do Estado e das tropas Soviéticas, na tentativa de suprimir a revolução e restaurar o controlo.
Este é um jogo sobre conflito. É um jogo com raízes históricas, baseado em eventos reais, vividos por pessoas reais, e há não tanto tempo como isso. Eventos com consequências drásticas para muitos dos envolvidos: ferimentos e morte, prisão e exílio. Eventos cujas consequências na sociedade Húngara e internacionalmente acarretaram repercussões duradouras e de grande alcance, em ambos os lados da Cortina de Ferro.
Isto são coisas sérias.
E jogar com coisas sérias pode ser controverso.
Com efeito, “jogar” é mais frequentemente associado a sentimentos de alegria e diversão, mesmo que temperados com alguma competição e conflito mitigado, e não com sofrimento e destruição. O próprio conceito e ascensão do que se vem designando por Eurogames está intimamente ligado a um distanciamento intencional de elementos de jogo como sejam o conflito direto, ataque aos adversários, ou eliminação de jogadores durante a partida, em conjunto com uma importância acrescida dos processos de jogo sobre os temas.
E, no entanto, existe paralelamente uma longa tradição de jogos de guerra e outros jogos sobre conflitos, simulando, ou recreando, disputas, lutas e guerras, através dos tempos. São jogos que, muitas das vezes, possibilitam aos jogadores tomar parte ativa em diferentes lados de um conflito. Este é um tipo de jogos que não atrairá todos, e não há nenhum problema nisso! O mesmo acontece com livros de história militar, filmes de guerra, e outras obras sobre estas temáticas. Alguns jogadores tratarão estes jogos como quaisquer outros, numa espécie de abstração, vendo apenas peças e características a usar em busca da vitória, sem qualquer ligação ou imersão no tema. E também não há nenhum problema nisso! As pessoas procuram diferentes experiências à volta de uma mesa de jogo, tendo em consideração as suas preferências e perspetivas, o conjunto de parceiros em até, a disposição do momento.
Estas considerações são extensivas a uma gama muito mais alargada de jogos, tendo por comum debruçarem-se sobre temas que afetaram, ou continuam a afetar, as vidas de outros e, talvez até, as nossas próprias vidas. Alguns exemplos que conheço, mas não experimentei ainda, e que envolvem diferentes tipos de decisões incluem: This Guilty Land, lidando com a luta política sobre a escravatura antes da Guerra Civil Americana, colocando frente a frente Justiça e Opressão; This War of Mine, em que se assume o papel de civis, tentando sobreviver numa cidade em guerra, com todo um conjunto associado de dilemas morais; Article 27, colocando sobre a mesa agendas nacionais, agendas comuns, e as trocas e compromissos da política internacional, tendo como pano de fundo o Conselho de Segurança das Nações Unidas; The Cost, sobre a gestão da indústria dos asbestos, incorporando a mortalidade dos próprios trabalhandos; Healthy Heart Hospital, e a gestão de entidades de saúde. E poder-se-iam ainda acrescentar a esta lista muitos dos jogos de base económica, em que o lucro máximo é o objetivo, ou todos aqueles que abordam temas de expansão nacional e colonização.
Para mais sobre isto podem ler, entre outros, “
Designing for Difficult Subjects”, de Chris Bennett, do The Game Design Thinking Research Group, Stanford University.
E então, qual é a minha abordagem a este tema?
Bem, os jogos de guerra foram, muito provavelmente, os primeiros jogos complexos que joguei, na adolescência, lá para o final da década de 1970 e início da década de 1980. Com cenários principalmente ligados à Segunda Guerra Mundial eram jogos como Panzerblitz, Air Force, Operation Barbarossa, e, mais tarde, Squad Leader. Além deste, algumas tentativas com jogos de guerra baseados em miniaturas. E, ainda, outros jogos sobre conflitos, como Diplomacy, o jogo de maior tensão que alguma vez joguei (exceto xadrez de competição, mas isso é toda uma outra história), lutando por obter a supremacia num Europa anterior à Grande Guerra, negociando abertamente e em pequenos grupos, fazendo alianças, eventualmente quebrando-as aquando da decisão secreta dos movimentos, e tudo isto ao longo de quatro ou mais horas de jogo.
Mas, e quanto à atração? Pensando no assunto, posso dizer que vem em camadas, em ondas.
Há todo o contexto histórico subjacente, desenrolando-se na tua mesa de jogo, com os eventos a serem recriados, mas incorporando decisões nossas. Uma espécie de dilema passivo-ativo, sendo em simultâneo observador e agente, experimentando alternativas, e ses, compreendendo os desfechos da vida real, remetendo tantas vezes para segundo lugar a simples questão de ganhar ou perder.
Depois, há o lado da simulação, que traz aquele sentimento de lidar com lugares reais, com personagens e características baseadas na realidade, capacidades de movimento e de alcance, equipamentos e armas. Todos estes elementos, com mais ou menos detalhe, existiram mesmo, ou existem. São mais o resultado de uma pesquisa detalhada do que da imaginação, aumentando assim a realidade em que nos movemos.
Em termos dos jogos em si, há o domínio da estratégia da tática, organizando e movimentando unidos, tendo em consideração as características específicas de cada uma, o terreno, o estado do tempo, a possibilidade ou ausência de reforços, o relógio que não para, as sequências de acontecimentos. Estes jogos são, por norma, intrinsecamente assimétricos, porque não existem, de facto, lados completamente equilibrados. Os objetivos a alcançar podem ser muito variados, como sejam, resistir num bastião, sobreviver tempo suficiente até à chegada de reforços, capturar uma colina, proteger uma ponte, assegurar a manutenção de rotas de abastecimento, atrasar o inimigo. E, em consonância, é frequente encontrar uma palete, ou uma gradação, de condições de vitória, incluindo a possibilidade de vitórias e derrotas parciais. Raramente se trata de dar xeque-mate ao adversário.
Para além disto, estes jogos exibem padrões complexos de incerteza, que não de aleatoriedade, relacionados com os elementos desconhecidos, com o nevoeiro da guerra, com a moral variável das tropas, e até com acontecimentos políticos representados fora do tabuleiro, fora do campo de batalha.
Claro que tudo isto se trata de versões estilizadas e asséticas dos verdadeiros conflitos e guerras, encarados sobretudo numa perspetiva de Quartel-General, na terceira pessoa – bem, é possível chegar ao nível individual e às características únicas de cada pessoa representada em alguns jogos tático e de campanha -, sem civis por perto, sem impacto duradouro naqueles que combatem, e desenrolando-se no conforto de uma sala de estar. E é possível voltar atrás no tempo uma e outra vez, vivendo novamente a ação, repetindo a experiência, usando o conhecimento adquirido, como se nos movimentássemos entre mundos paralelos, em vez de num mundo real, onde se tem uma única tentativa, uma oportunidade, e é ínfima a distância entre a vida, o dano e a morte.
Meras deambulações de um jogador de longa data. Cada um terá uma abordagem única a cada jogo, a estes jogos, do mesmo modo que diferentes pessoas extrairão diferentes coisas dos mesmos livros, filmes ou músicas, e que sentirão emoções muito diferentes daquelas vividas pelos seus autores.
Days of Ire não é uma simulação baseada em hexágonos e muitas unidades, cheio de tabelas de movimento e de combate. É, de facto, uma criatura muito mais fluída, em que o constante movimento, a gestão de recursos e a ativação de capacidades, bem como o sentido de oportunidade, são de capital importância, nesta batalha de rua de David contra Golias.
Porque é assim? O que foi incluído e o que foi deixado de fora?
Bem, os jogos são imaginados e criados por pessoas reais, com a sua própria história, perspetivas, preferências, motivações e abordagens. Assim, o que será mais apropriado do que conhecer o autor, um pouco do seu trabalho, e ouvir, ao perto e na primeira pessoa, a sua versão sobre tudo isto?
Juntem-se a mim, amanhã, para o Episódio 2!
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