24 de maio de 2020

70 dias



16 de março de 2020. Dia 1 de confinamento. O inevitável, tendo em conta o que se sabia. Passara somente a ser uma questão de quando, e o quando era agora.


O dia continuava dividido em duas metades. A do trabalho-trabalho seguia quase idêntica na maioria dos dias, vivida sobretudo no computador. Mudo o regime, acrescentou-se a palavra tele, alguma distância mais em relação à secretária habitual, mas à mesma distância, indiferenciada na verdade, de quem está do outro lado da rede.

A transição para a segunda metade, a do trabalho-jogos, deixou de ser feita através de uma caminhada pela cidade, mais ou menos longa dependendo do percurso escolhido e da necessidade de prolongar o intervalo. Foi substituída por uma caminhada na passadeira estática, com vista para uma parede ou para a janela, por uma mudança de sala, ou apenas por uma mera troca de computador, desligar um, ligar o outro.

Tudo o resto, todos os outros lugares onde se faziam os dias, parecem ter recuado, parado, desvanecido.




Já antes tinham começado os cancelamentos, no mundo do trabalho-jogos.

Primeiro foi a LeiriaCon, que estava agendada para finais de março. No ano passado tinha marcado presença apenas no domingo, dia final. Para este apostava em grande, na experiência total, na imersão completa, de quinta a domingo! As férias estavam marcadas e o alojamento reservado. O programa ia-se preenchendo: uma partida de Newton com o João Neves, à espera desde a Invicta Con; uma estreia nas Leiria Talks, ambicionando fazer viajar por cinco décadas em dez minutos; um seminário de Paul Grogan, sobre ensino e demonstração de jogos; a apresentação pública do Rossio; encontros reais depois dos encontros virtuais, como com o Orlando Sá; (re)encontros com editoras, criadores, jogadores e outros cúmplices destas lides, nacionais e internacionais; os protótipos em desenvolvimento e os jogos; o levantamento da última edição do Madeira, e o StarWars Outer Rim. Prometia muito! Planos suspensos, adiados, descontinuados.

Quase em simultâneo, uma outra estreia cancelada: a realização de uma exposição de jogos na biblioteca da Universidade, em Aveiro, com uma seleção de alguns dos “meus”, de sempre e de agora, e de mais uns quantos, graças à colaboração de várias editoras. Ficou um esboço, um plano, uma possibilidade, a aguardar por um futuro.

Pararam também, naturalmente, os encontros promovidos pelo Grupo de Boardgamers de Aveiro, noites para jogar e fotografar.

E mais tarde, porque a situação estava para durar, foi a vez da e ser cancelada a RiaCon, em Estarreja.




Entretanto, o trabalho-jogos prosseguia, já que também aqui muito é feito a solo e à distância. Por isso nada parou, apesar das incertezas. As ideias continuam a brotar, os projetos a ser desenvolvidos, as colaborações a serem necessárias.

Mais uns quantos testes de protótipos através das plataformas digitais, com Dawson, Pedro Silva ou Andrew Bosley.

Tradução ou revisão de regras de jogos partilhados gratuitamente, uma tendência que cresceu rapidamente nestes tempos, casos de Paper Roll & Write, de Orlando Sá, André Santos e Pedro Kerouac, e de Par Odin, da editora francesa Old Chap Games.

Tradução ou revisão de regras de jogos com colaborações em curso ou em perspetiva, continuando a tentar alargar o leque de jogos disponíveis em Português, bem como a contribuir para que as regras permitam facilitar a descoberta dos jogos. Contactos que vão de Taiwan a Salt Lake City, passando por Sevilha, Linköping ou Minneapolis.

Para além das páginas que se foram somando aos cadernos para registo de ideias soltas e de um jogo em desenvolvimento próprio.




Ao trabalho-jogos somaram-se os jogos-jogados, em solitário, a dois ou a três, aproveitando o facto de a casa ter ganho mais um habitante, durante estes tempos, além de um observador adicional, que rapidamente trocou a tentação de derrubar as peças pelo aconchego das caixas de jogos, coisas que só os gatos percebem.

Entre os mais habituais, estreias há muito aguardadas, e até aquisições recentes, foram à mesa jogos como Arboretum (ou a difícil arte de conjugar a colocação de cartas com a manutenção do controlo em mão), Azul (já um clássico da casa), Glen More (sempre um favorito), Jetpack Joyride (uma divertida corrida com ação simultânea), Kanagawa (lindíssimo, uma das aquisições recentes), Keltis (outra escolha segura), Keyflower (jogado pela primeira vez e convertido), Kingdom Defenders (uma agradável surpresa, ganho numa rifa na RiaCon 2019), Photosynthesis (belo e original), Sagrada (em modo puzzle), Santorini (ainda com muito por explorar, e com vontade adicionara uns toques de pintura), Solenia (outro com mecanismos originais e muito interessante de jogar), Suburbia (este teve de ser a solo), Takenoko (entrando no reino dos Pandas comilões), Tsuro (no labirinto) e Yangtze (mais um cliente frequente).

Foi tempo de diversificar, mais do que de aprofundar, talvez como oposição às novas rotinas e pouco variados.

Não foi desta que fiquei fã das plataformas online para jogos de tabuleiro, sejam BoardGameArena, Tabletopia ou TabletopSimulator. Talvez por ter ainda experimentado pouco, apenas um Tzolk’in, graças aos convites do Pedro, e uns testes de protótipos. Certamente por ter hipóteses de jogar em casa. Fica a sensação de que esbatem as diferenças de perceção entre o que é um jogo digital e um jogo físico, aqui jogado através do computador. Falta algo. Faltam as pessoas à volta da mesa, os olhares, o toque das peças, os sons. Creio que, apesar de tudo, será mais interessante jogar, com ligação de imagem e som, jogos em que cada um usa o seu exemplar, ou é usado um único por todos os jogadores. No entanto, isto não será aplicável a todos os jogos.


24 de maio de 2020. Dia 70 de confinamento. Amanhã começará um registo misto no trabalho-trabalho. O regime no trabalho-jogos continua à distância.

9 de maio de 2020

"À entrada da reta final lutam por posição, pescoço com pescoço!"



Este é mais um que anda por aqui, com quase 50 anos de idade e marcas próprias do tempo. Do tempo que se mede em voltas ao Sol, e do tempo que se mede em jogadas, feitas por mãos, de pessoas, à volta de uma mesa.

A imagem não engana, e o nome também não. Em Jockey vamos às corridas de cavalos. De autoria de S. Spencer, foi publicado originalmente em 1973, pela Ravensburger Spieleverlag. E, como outros dessa mesma editora, foi trazido para Portugal pela Majora, ostentando na faixa lateral da caixa o triângulo preto com a inscrição “Jogos de Ravensburg”.

1973.
Em Portugal não tinha ainda acontecido a Revolução dos Cravos.
Para o primeiro single dos UHF, Cavalos de Corrida, faltavam ainda 7 anos.

Em Ascot, corria-se então mais uma edição da já então centenária Gold Cup. Uma volta ao traçado com cerca de 4000 metros de extensão, ou para ser rigoroso, 2 milhas, 3 furlongs e 210 jardas, no peculiar sistema imperial de medidas. Uma volta apenas, para um vencedor. Uma volta, para uma equipa vencedora, proprietário, treinador, jockey e mais os outros que ficam nos bastidores. Uma volta, para marcar a continuidade de uma linhagem de vencedores.

O cronómetro parou aos 4 minutos, 33 segundos e 46 centésimos. O galope furioso a mais de 50km/h deu lugar ao trote relaxado. A tensão da pista deu lugar às vitórias e derrotas nas bancadas. Vencedor: Lassalle, um cavalo de quatro anos de idade, de Zenya Yoshida, montado por Jimmy Lindley e treinado por Richard Carver Junior (1). Uma época dourada, em plena maturidade competitiva, na qual conquistou, para além da Gold Cup, o Prix de Cadran e o Prix Gladiateur (2).




Mas, em Jockey, nós corremos do lado de fora. Não somos proprietários, nem treinadores, nem os próprios jockeys … e também não somos os cavalos. Somos apostadores! E sim, teremos alguma influência no desenrolar da corrida, puxando pelos nossos favoritos, em cada uma das três corridas agendadas para esta nossa tarde no hipódromo.

Primeiro: apostar.

Tentar antever as probabilidades de sucesso de cada um dos quatro cavalos, com base nas cartas que conhecemos, e decidir: apostar apenas para o segundo lugar; reduzir o risco, apostando em duas hipóteses para vencedor; apostar no vencedor; arriscar forte e apostar na ordem de chegada, primeiro e segundo. Quanto maior o risco, maior o ganho em caso de vitória. Depois de decidir como, decidir quanto.

As apostas são, naturalmente, secretas até ao final da corrida, alimentando o suspense.




Depois, segue-se a corrida.

Os apostadores puxam pelos cavalos, fazendo-os avançar ao longo do traçado. Ora como ninguém é proprietário dos cavalos, cada apostador pode fazer avançar qualquer um deles em cada turno, e até mesmo cavalos diferentes em turnos diferentes.

E como as apostas não são conhecidas, há que dissimular a estratégia!




Cada apostador dispõe de um conjunto de cartas, que vê antes de efetuar as apostas, para usar ao longo de toda a corrida. Conhece assim todas as cartas de que dispõe. Não conhece as dos adversários, nem há cartas para biscar ao longo do percurso.

As cartas são de dois tipos principais: as coloridas e as brancas. As primeiras fazem avançar o cavalo da cor indicada, e podem representar uma distância específica a percorrer ou uma distância condicionada pela situação de corrida. As segundas fazem avançar um cavalo que se encontra em determinada posição, não dependendo da cor.

Nos exemplos:

  • o cavalo amarelo pode avançar até 30 casas, se não estiver em primeiro, mas não podendo ficar a menos de 5 casas deste, um trunfo bom para recuperações fulgurantes; 
  • o cavalo vermelho avança 10 casas, um movimento básico e seguro; 
  • o cavalo azul, se estiver em primeiro, triplica o seu avanço, é o ataque; 
  • o cavalo na segunda posição avança 13 casas;
  • o cavalo na terceira posição avança 18 casas, mas apenas pode ficar uma casa à frente do líder;
  • o cavalo na quarta posição avança 20 casas.

Há que jogar as melhores cartadas em cada momento!




É uma questão de conjugar risco e benefício, aposta e tática de corrida.

Juntar uma boa dose de dissimulação e bluff.

Observar o comportamento dos adversários.

E correr para a linha de chegada.




No final revelam-se as apostas, o que pode dar azo a algumas surpresas, e fazem-se as contas aos ganhos e perdas.

E venha a próxima corrida, porque uma volta passa depressa! E a tentação de acumular ganhos, ou de tentar recuperar de perdas, está aí, como em todos os jogos de apostas.




Curiosamente, mais um jogo envolvendo dinheiro, representado por notas e com tudo bem arrumadinho na caixa, como vários outros desse tempo e que por aqui têm passado, casos da Bolsa e do Petróleo.