16 de março de 2020. Dia 1 de confinamento. O inevitável, tendo em conta o que se sabia. Passara somente a ser uma questão de quando, e o quando era agora.
O dia continuava dividido em duas metades. A do trabalho-trabalho seguia quase idêntica na maioria dos dias, vivida sobretudo no computador. Mudo o regime, acrescentou-se a palavra tele, alguma distância mais em relação à secretária habitual, mas à mesma distância, indiferenciada na verdade, de quem está do outro lado da rede.
A transição para a segunda metade, a do trabalho-jogos, deixou de ser feita através de uma caminhada pela cidade, mais ou menos longa dependendo do percurso escolhido e da necessidade de prolongar o intervalo. Foi substituída por uma caminhada na passadeira estática, com vista para uma parede ou para a janela, por uma mudança de sala, ou apenas por uma mera troca de computador, desligar um, ligar o outro.
Tudo o resto, todos os outros lugares onde se faziam os dias, parecem ter recuado, parado, desvanecido.
Já antes tinham começado os cancelamentos, no mundo do trabalho-jogos.
Primeiro foi a LeiriaCon, que estava agendada para finais de março. No ano passado tinha marcado presença apenas no domingo, dia final. Para este apostava em grande, na experiência total, na imersão completa, de quinta a domingo! As férias estavam marcadas e o alojamento reservado. O programa ia-se preenchendo: uma partida de Newton com o João Neves, à espera desde a Invicta Con; uma estreia nas Leiria Talks, ambicionando fazer viajar por cinco décadas em dez minutos; um seminário de Paul Grogan, sobre ensino e demonstração de jogos; a apresentação pública do Rossio; encontros reais depois dos encontros virtuais, como com o Orlando Sá; (re)encontros com editoras, criadores, jogadores e outros cúmplices destas lides, nacionais e internacionais; os protótipos em desenvolvimento e os jogos; o levantamento da última edição do Madeira, e o StarWars Outer Rim. Prometia muito! Planos suspensos, adiados, descontinuados.
Quase em simultâneo, uma outra estreia cancelada: a realização de uma exposição de jogos na biblioteca da Universidade, em Aveiro, com uma seleção de alguns dos “meus”, de sempre e de agora, e de mais uns quantos, graças à colaboração de várias editoras. Ficou um esboço, um plano, uma possibilidade, a aguardar por um futuro.
Pararam também, naturalmente, os encontros promovidos pelo Grupo de Boardgamers de Aveiro, noites para jogar e fotografar.
E mais tarde, porque a situação estava para durar, foi a vez da e ser cancelada a RiaCon, em Estarreja.
Entretanto, o trabalho-jogos prosseguia, já que também aqui muito é feito a solo e à distância. Por isso nada parou, apesar das incertezas. As ideias continuam a brotar, os projetos a ser desenvolvidos, as colaborações a serem necessárias.
Mais uns quantos testes de protótipos através das plataformas digitais, com Dawson, Pedro Silva ou Andrew Bosley.
Tradução ou revisão de regras de jogos partilhados gratuitamente, uma tendência que cresceu rapidamente nestes tempos, casos de Paper Roll & Write, de Orlando Sá, André Santos e Pedro Kerouac, e de Par Odin, da editora francesa Old Chap Games.
Tradução ou revisão de regras de jogos com colaborações em curso ou em perspetiva, continuando a tentar alargar o leque de jogos disponíveis em Português, bem como a contribuir para que as regras permitam facilitar a descoberta dos jogos. Contactos que vão de Taiwan a Salt Lake City, passando por Sevilha, Linköping ou Minneapolis.
Para além das páginas que se foram somando aos cadernos para registo de ideias soltas e de um jogo em desenvolvimento próprio.
Ao trabalho-jogos somaram-se os jogos-jogados, em solitário, a dois ou a três, aproveitando o facto de a casa ter ganho mais um habitante, durante estes tempos, além de um observador adicional, que rapidamente trocou a tentação de derrubar as peças pelo aconchego das caixas de jogos, coisas que só os gatos percebem.
Entre os mais habituais, estreias há muito aguardadas, e até aquisições recentes, foram à mesa jogos como Arboretum (ou a difícil arte de conjugar a colocação de cartas com a manutenção do controlo em mão), Azul (já um clássico da casa), Glen More (sempre um favorito), Jetpack Joyride (uma divertida corrida com ação simultânea), Kanagawa (lindíssimo, uma das aquisições recentes), Keltis (outra escolha segura), Keyflower (jogado pela primeira vez e convertido), Kingdom Defenders (uma agradável surpresa, ganho numa rifa na RiaCon 2019), Photosynthesis (belo e original), Sagrada (em modo puzzle), Santorini (ainda com muito por explorar, e com vontade adicionara uns toques de pintura), Solenia (outro com mecanismos originais e muito interessante de jogar), Suburbia (este teve de ser a solo), Takenoko (entrando no reino dos Pandas comilões), Tsuro (no labirinto) e Yangtze (mais um cliente frequente).
Foi tempo de diversificar, mais do que de aprofundar, talvez como oposição às novas rotinas e pouco variados.
Não foi desta que fiquei fã das plataformas online para jogos de tabuleiro, sejam BoardGameArena, Tabletopia ou TabletopSimulator. Talvez por ter ainda experimentado pouco, apenas um Tzolk’in, graças aos convites do Pedro, e uns testes de protótipos. Certamente por ter hipóteses de jogar em casa. Fica a sensação de que esbatem as diferenças de perceção entre o que é um jogo digital e um jogo físico, aqui jogado através do computador. Falta algo. Faltam as pessoas à volta da mesa, os olhares, o toque das peças, os sons. Creio que, apesar de tudo, será mais interessante jogar, com ligação de imagem e som, jogos em que cada um usa o seu exemplar, ou é usado um único por todos os jogadores. No entanto, isto não será aplicável a todos os jogos.
24 de maio de 2020. Dia 70 de confinamento. Amanhã começará um registo misto no trabalho-trabalho. O regime no trabalho-jogos continua à distância.
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