5 de janeiro de 2020

Através do Mundo

“Do you have a flag? No flag, no country!”, Eddie Izzard.


A caixa estava guardada na garagem há muitos anos. Talvez década e meia.

Ostentava alguns traços de humidade, mas nada de muito grave, nada que não se resolvesse com uma dose de sol, uma aspiração e uma limpeza. O tabuleiro e os cartões, no seu interior, estavam em surpreendente bom estado.

Outras marcas eram mais profundas: fita adesiva, espessa e negra, a unir os cantos e as bordas, lutando para manter a forma retangular; fita azul, rugosa, tentando, sem sucesso, que o tabuleiro fosse um todo; cartões com dobras e com a superfície desgastada.

Provas do muito uso que teve. Marcas que chegam do século passado.




Este é mais um jogo baseado num mapa, um planisfério cheio de nomes, de lugares, que existem mesmo. Conto mais de 350. Alguns que sempre foram familiares, por ouvir falar, por ler, por ver na televisão, pelas aulas de história e de geografia. Outros estranhos, com nomes exóticos, daqueles que costumo decorar. Quase nenhuns conhecidos, naquele tempo, por experiência vivida nas cidades e das ruas. Viajando com a imaginação, como também fazia com globos e mapas.

O objetivo é simples: ser o primeiro jogador a visitar um destino em cada um dos cinco continentes e regressar à cidade de partida, assinalada pela sua bandeira, cravada no mapa. Lembro-me de procurar usar os furos de partidas anteriores, evitando transformar o mundo num picotado, evitando que as cidades deixassem de segurar bandeiras.

Para ganhar a corrida à volta do mundo há que escolher o melhor percurso, usando rotas aéreas, traçadas a vermelho, linhas ferroviárias, de cor verde, ou travessias marítimas, tracejadas a branco.

Em cada jogada é apenas possível utilizar um meio de transporte, o que implica paragens para mudar, por opção estratégica ou por obrigação, uma vez que há sítios apenas acessíveis de uma única forma. Um lançamento de dado determina o número máximo de cidades percorridas, sendo que as ligações de barco estão limitadas a um único passo por turno.




Mas de onde partir e o que visitar? A escolha não será nossa!

Cinco cores.
Cinco conjuntos de cartões.
Cinco continentes.
Américas, Europa, África, Ásia, Oceânia.

Cada viajante parte de um continente diferente, retirando um cartão que determina a sua cidade de partida e de chegada. De seguida recebe um conjunto de cinco cartões, um por continente. São esses os pontos de visita, determinados pelo acaso.

Uma base para outros variantes, criadas para preencher tardes, em grupo ou a solo. Distribuindo mais cartões para prolongar o jogo, usando o mapa, os piões e os dados para fazer outras corridas, alterando regras.




Alguns destinos são mais temidos do que outros, como Reykjavik na Islândia. São três turnos por mar a partir de Gotenburg, e outros tantos de regresso.




Mas as viagens também têm os seus imprevistos, aqui na forma de notícias que chegam por telegrama, sinal dos tempos. Há que adaptar os planos e seguir imediatamente as novas indicações. É o que acontecerá a quem for mais bafejado pela sorte aos dados, aqueles que já obtiveram um seis pela terceira vez.




Este jogo evidencia alguns problemas de produção, com cartões repetidos e com cidades sem o cartão correspondente. Com algum trabalho de verificação, um a um, foi possível retificar manualmente as falhas, naquele tempo antes das impressoras.




Nomes de cidades e de países. Ontem e hoje. No mesmo local, mas fazendo parte de realidades diferentes. O mundo mudou. Uma vez mais. A geografia política é agora outra.

Belgrado continua a ser Belgrado, mas fazia então parte da Jugoslávia, hoje é a capital da Sérvia. Lourenço Marques passou a ser Maputo, após a independência de Moçambique, em 1975. E os exemplos são muitos. Porque muitas foram as fronteiras que mudaram.

Esta edição é uma testemunha do seu tempo. Da época da guerra fria, em que havia ainda duas Alemanhas, a Checoslováquia, a Jugoslávia, em que existia a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e em que as mudanças em muitos países africanos estavam por acontecer.

Depois, há um par de opções que são apenas estranhas, caso dos Açores, que figuram apenas como sendo do Oceano Atlântico, não aparecendo associados a Portugal.




Uma parte também da história dos jogos e da indústria dos jogos. A versão aqui mostrada era editada pela portuguesa Majora. A caixa e a folha de regras não referem a autoria do jogo nem o ano de edição, como era frequente na altura.

Quanto ao ano, algumas das referências das cidades apontam, provavelmente, para o início da década de 70, ou final da década de 60 do século XX. Baterá certo em termos da minha própria idade.

Quanto à origem foi necessário seguir um detalhe da caixa. Na frente, a marca de copyright: Otto Maier Verlag, Ravensburg. Com umas quantas pesquisas neste mundo digital tornou-se possível saber um pouco mais. Primeiro, graças ao Google e a sítios de vendas, identifiquei o título original, Weltreise, e capas de diferentes edições por volta dos anos 50 e 60.

Com o título foi possível encontrar o jogo no BoardGameGeek, onde aparece com data de criação em 1930, e autoria de Johann Wilhelm Stündt e Jochen Zeiss.

A Otto Maier Verlag, foi fundada por Otto Maier, em 1883 (!), na cidade de Ravensburg. Otto tinha como visão juntar entretenimento e educação e a empresa foi crescendo ao longo de sucessivas gerações familiares. O primeiro jogo, bem diferente do atual, já se chamava “Uma Viagem à Volta do Mundo”, um tema recorrente. Hoje conhecemos esta marca por Ravensburger, com jogos e puzzles, e o logo azul, em forma de triângulo, num canto da caixa.


Termina aqui este apontamento de viagem, na geografia, na política, no tempo e nas memórias.

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