Ilustração do "Livro de Jogos de Afonso X, o Sábio"
Disponível em http://games.rengeekcentral.com/tcintro.html
Imagine-se na
corte de um Rei, não dos reis atuais mas dos de antigamente. Há muito muito
tempo. Quando o mundo era outro, feito de mundos mais pequenos, que ainda não se conheciam. O
ano era 1283. O reino situava-se na Península Ibérica. O Livro, mandado
escrever e ilustrar por ordem real, estava terminado. Altura de dar a palavra
ao próprio monarca, Afonso X, de cognome o Sábio.
(…)
Os outros jogos que são praticados sentados são, por exemplo, o jogo do xadrez, das tábulas e dos dados e de outros trebelhos de muitos tipos. E ainda que todos estes jogos sejam muito bons, cada um no momento e no lugar em que convêm, estes jogos que são praticados sentados e diariamente, e tanto à noite como de dia, convêm às mulheres que não montam a cavalo e também aos homens velhos e fracos, ou àqueles que preferem gozar os seus prazeres em privado para não se irritarem nem ficarem tristes com eles, ou àqueles que se encontram sob o poder de outrem, bem como na prisão ou em cativeiro, ou que estão no mar, e frequentemente a todos aqueles que estão sujeitos a um tempo rigoroso, pelo que não podem montar a cavalo nem ir à caça nem a qualquer outro lado e são forçados a permanecer em casa e a procurar alguns tipos de jogos com que tenham prazer e se confortem e se ocupem.
E portanto nós, Dom Afonso, pela graça de Deus, Rei de Castela, de Toledo, de Leão, da Galiza, de Sevilha, de Córdova, de Múrcia, de Jaén e do Algarve, mandámos fazer este livro, em que falamos da maneira como são feitos aqueles jogos mais agradáveis, tal como o xadrez, os dados e as tábulas.
E ainda que estes jogos se diferenciem de muitas maneiras, como o xadrez é mais nobre e exige maior mestria do que os outros, falamos dele em primeiro lugar.
Contudo, antes de falarmos deste jogo queremos mostrar alguns dos motivos que os sábios antigos apresentaram para demonstrar a superioridade de cada um destes três tipos de jogos, como o xadrez, os dados e as tábulas, pois sobre isto apresentaram muitas razões, querendo cada um deles mostrar o fundamento da superioridade destes jogos, mas as que são mais certas e mais verdadeiras são as que apresentamos agora.
Segundo contam as histórias antigas, na Índia Maior havia um Rei que gostava deveras dos sábios e que os levava sempre consigo, fazendo-os raciocinar muito frequentemente sobre os factos que nascem das coisas. E, de entre estes, havia três que tinham opiniões diferentes.
Um disse que mais valia a inteligência do que a sorte, porque quem vive com base na inteligência faz as suas coisas de uma maneira metódica e, ainda que perca, não é culpado porque fez o que convinha.
O outro disse que mais valia a sorte do que a inteligência, porque, se o seu destino fosse perder ou ganhar, nenhuma inteligência que tivesse o poderia evitar.
O terceiro disse que o melhor era poder viver com base numa e noutra, porque isso era prudência, porque quanto maior fosse a inteligência mais cuidado se poderia ter de modo a fazer as coisas de modo tão completo quanto possível, e também que quanto mais se dependesse da sorte, maior seria o risco incorrido porque esta não é uma coisa certa; mas a verdadeira prudência consiste em aproveitar da inteligência aquilo que cada homem sabe ser-lhe mais vantajoso, e em proteger-se tanto quanto possível dos danos da sorte, e em aproveitar dela tudo o que estiver a seu favor.
E depois de exporem muito zelosamente as suas razões, o Rei ordenou que cada um presentasse um exemplo para provar o que dissera e concedeu-lhes o prazo que pediram. E os sábios foram-se embora e cada um consultou os seus livros de modo a comprovar a sua opinião.
E quando chegou o momento, cada um deles apresentou-se diante do Rei com a sua prova.
E aquele cuja opinião era a inteligência levou o xadrez com as suas peças, mostrando que quem tinha mais inteligência e era perspicaz poderia vencer o outro.
E o segundo, cuja opinião era a sorte, levou os dados, mostrando que a inteligência não servia para nada se não fosse acompanhada pela sorte, porque parecia que era através da sorte que os homens ficavam em vantagem ou em desvantagem.
O terceiro, que disse que o melhor era aproveitar o melhor das duas, levou o tabuleiro com as suas tábulas, contadas e colocadas ordenadamente nas suas casas, e os seus dados, que ordenavam os movimentos a fim de se poder jogar, como se mostra neste livro que fala separadamente deste jogo e que mostra que quem o sabe jogar bem, ainda que a sorte dos dados lhe seja adversa, com a sua prudência será capaz de mover as tábulas de modo a evitar os danos que o lançamento dos dados lhe pode trazer."
Em "O Livro de Jogos de Afonso X, o Sábio", Jorge Nuno Silva, 2013.
http://jnsilva.ludicum.org/HJT1516/Afonso_obrigatorio.pdf
Sem comentários:
Enviar um comentário