Vai um Café com Pessoa?
Café bebida, feita a partir de grãos com origem em terras longínquas. Café colhido, seco, torrado, moído, com antecedência ou apenas na hora de fazer. Café lugar. Ponto de encontro de pessoas, ou de uma pessoa consigo própria, quem sabe desdobrando-se entre passados, presentes alternativos, e futuros por acontecer.
Uma pessoa com apelido Pessoa e Fernando como nome próprio. Pessoa desdobrando-se em pessoas, umas mais familiares do que outras, como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, ou Ricardo Reis. Passeando entre cafés e livrarias. Escritas, e leituras, com chávena ao lado, o aroma pairando, o calor aconchegante.
Café e Pessoa ficam bem juntos!
Estes são também os nomes de dois jogos acabados de chegar, cortesia da Pythagoras. Jogos em que é possível vislumbrar pontos de contacto entre si: criados por autores portugueses que se vêm afirmando nos mercados nacional e internacional, e que se inspiram em temas e motivos nacionais; partilham o belíssimo trabalho de ilustração de Marina Costa, que não conhecia, mas de quem já fiquei fã; em ambos podemos encontrar os cafés de época Martinho da Arcada e a Brasileira, e o próprio Pessoa; os dois podem ser saboreados a solo ou partilhados em pequeno grupo, como também acontece com o momento do café, ou com o prazer da leitura.
Aqui fica um aperitivo, acabado de sair da caixa.
Quem me conhece sabe que tomo vários cafés por dia. Não que seja um especialista das variedades puras, das misturas, e dos processos. Começou por ser bebida dita social ou para cumprir um consumo obrigatório, em tempos de Universidade e em lugares de encontro, de estudo, ou de mera paragem. Os Cafés-Lugar chamavam-se então Palácio e Convívio, a que se juntou mais tarde o Bolinão.
Neste Café feito jogo figura uma carta de um outro Café-Lugar, que remete para a terra-berço e berço da nação. Ostenta a inscrição Guimarães, 1953, data de estabelecimento do Café Milenário, que se situa à entrada do Largo do Toural, junto ao troço de muralha com a afamada inscrição “Aqui nasceu Portugal”, e cujo nome celebrará as origens remotas da cidade, aí uns mil anos antes, por volta de 953. O Milenário continua a existir, com as características mesas com tampo de vidro redondo sobre um tripé em curva elegante, acompanhadas por cadeiras com ripas em madeira. A clientela continuará a ser maioritariamente local e masculina. Os temas do dia, os jornais, a política e a bola, continuarão a preencher as conversas.
O Café-Jogo vem numa caixa pequena, com 18 x 13 cm, que o torna fácil de levar para qualquer lado, até para um Café-Lugar. É verdade que uma pequena mesa-redonda não dará mais do que para jogar a solo, talvez na companhia de um Café-Bebida e em substituição do Diário da praxe.
Mas de que trata, afinal? Bem, de criar a nossa própria indústria de café, produzindo o grão, secando, torrando, armazenando e distribuindo. Tudo isto tendo em conta as quatro variedades de café presentes, as diferentes necessidades de cada café de destino, e a importância de estabelecer e otimizar toda esta cadeia. O que é bem mais desafiante do que pode parecer à primeira vista, pois a colocação de cada carta, afinal o elemento principal e quase único do jogo, abre novas perspetivas de ação, enquanto simultaneamente fechas outras, ao sobrepor-se parcialmente às cartas anteriores.
Uma rápida olhadela ao livro de regras, e aos componentes, permite perceber porque é que este jogo tem sido tão bem acolhido: muita originalidade, pelo modo como são usadas as cartas; regras muito simples, que se aprendem em poucos minutos; e muitas escolhas difíceis.
Está na hora de experimentar, primeiro a solo, e depois acompanhado. Entretanto, podem
ver aqui uma demonstração, por Richard Ham, mais conhecido por Rahdo, com todo aquele entusiasmo que o caracteriza!
Este não é o meu primeiro contacto com os jogos criados pela dupla Rôla e Costa.
Em 2019, na Leiria Con, tive o privilégio de poder experimentar, pela mão do próprio Rôla, o
Yinzi, então acabadinho de publicar pela Spielworxx, numa refinada produção e com um extraordinário trabalho de ilustração de Harald Lieske. Trata-se de um jogo económico, bastante complexo, cheio de processos interligados, de produção e comercialização, na China da dinastia Ming. Um daqueles que se costumam designar por jogos “pesados”, a requerer uma aprendizagem progressiva, e sempre um bom par de horas para jogar.
Alguns meses depois, tive a oportunidade de efetuar a tradução do jogo seguinte desta dupla,
6 Castelos, para a Pythagoras. Um regresso a tempos medievais, em terras lusas, ali pela zona de Idanha-a-Nova, procurando promover o seu desenvolvimento, à sombra da linha protetora dos Castelos.
Agora surgiu este Café, que está ali a pedir para ir à mesa. Três jogos, três propostas muito diferentes. Aguardemos, com expetativa, pelas próximas criações!
“Pensei: o gajo nunca mais chega. E depois penso: não posso chamar-lhe “gajo”, é um grande poeta, talvez o maior poeta do século vinte, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho.”. Em Requiem, de Antonio Tabucchi.
Pois o Pessoa finalmente chegou, mais tarde do que o previsto, por circunstâncias próprias deste mundo interligado, em tempos de fabrico na China, pandemia, e perturbações nas cadeias logísticas.
Chegou, e não veio sozinho, pois no Pessoa-Jogo a proposta é, nada mais nada menos, do que assumir o papel de um de quatro heterónimos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, ou Ricardo Reis. Deambularemos, em busca da inspiração, representada por cartas ilustradas com excertos das obras, por Cafés-Lugares como A Brasileira ou o Martinho da Arcada. Entraremos na Livraria, para recolher prateleiras cheias de livros, bebendo na escrita de outros e expandindo a nossa biblioteca. Escreveremos poemas em plena Praça do Rossio, dando corpo à obra que ficará para a posteridade. Alternaremos, por vezes, ente o “eu” de Pessoa e o “eu” heterónimo, entre Pessoa e Personagem!
Com pausas para descansar e repor energia, buscando compreender a influência dos mapas astrais, procurando desenvolver os estilos mais adequados ao nosso heterónimo, entre Naturalismo, Classicismo, e Futurismo, ou abordando o livro Mensagem, há aqui muito para explorar. Mas o tempo é finito, em 1935 o poeta morre, os seus “eus” e “eles” desaparecem, e o jogo termina. Fica a obra de cada um!
Podem dar aqui uma
espreitadela ao modo como o Rahdo absorveu e tratou este jogo, há apenas uma semana.
Este era um jogo há muito aguardado. Não por ser um profundo conhecedor da obra em nome de Pessoa ou de qualquer um dos seus heterónimos, dos quais talvez sinta uma maior afinidade com Álvaro de Campos, quem sabe pela formação partilhada em engenharia e pelo fascínio pelo engenho e pelos engenhos. Aguardado não apenas pela delícia do tema, pela notória paixão do Orlando Sá por este vulto maior da escrita, ou pela maneira de fazer do tema um jogo, que seriam já razões de sobra. Mas porque tive a felicidade de acompanhar e de participar na fase final de desenvolvimento, experimentando, analisando, discutindo. A chegada do jogo terminado, completo, ilustrado, para lá dos conceitos, esboços, e protótipos, é um momento muito especial! Talvez só comparável a, de seguida, o dar a conhecer a outros!
Felizmente, são momentos que se têm vindo a repetir, aqui e ali.
Este é mais um passo em caminhos percorridos com o Orlando Sá. Tudo começou por uma troca de mensagens num grupo de Facebook, quando pouco conhecia do seu trabalho: sabia que tinha criado o Porto, e julgo que nem sequer tinha ouvido falar da sua incursão anterior nestes mundos, com o Adamastor.
Seguiu-se o convite para participar nos testes do Rossio, e foi um prazer ir descobrindo o modo de trabalhar estes jogos, de tratar temas de inspiração portuguesa, e de procurar novos desafios, num grau crescente de sofisticação.
Depois, uma pequena colaboração, ao nível da revisão e tradução para um projeto feito em plena pandemia: Paper Roll & Write. Um jogo bem-humorado, à base de dados e de traçar espaços em folha de papel, inspirado pelas notícias de açambarcamento de papel higiénico que então circulavam! Um projeto a três, da autoria do Orlando, pelo Pedro Kerouac e pelo André Santos.
E, entretanto, surgiu este Pessoa, uma vez mais com colaboração na fase final de testes e de polimento, e que me atraiu desde logo pelo risco do tema escolhido e pela originalidade da abordagem.
Consta que não há falta de novas ideias em desenvolvimento, pelo que é com muita curiosidade que espero notícias sobre os próximos projetos!
Obrigado Miguel pela referência. Tem sido um prazer trabalhar contigo e espero que continuemos a estender as nossas colaborações.
ResponderEliminarSabes que o gosto é mútuo e a disponibilidade total :) Tem sido fascinante descobrir estes mundos!
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